A armadilha da definição de terrorismo
Eu assisti, ninguém me contou. No decorrer da invasão das sedes dos três poderes em Brasília, no dia 8 de janeiro de 2023, o apresentador da Globo News chamou repetidamente os vândalos de terroristas. Depois a emissora corrigiu essa abordagem (sem dizer que corrigiu, nem porque corrigiu). Os invasores tinham intenções golpistas (chamar uma intervenção militar para interromper o mandato do presidente recém-eleito e já empossado, Lula da Silva), mas eles eram terroristas?
Jair Bolsonaro (já eleito e ainda não empossado) declarou no final de 2018 na avenida Paulista: “Bandidos do MST [Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra], bandidos do MTST [Movimento dos Trabalhadores Sem Teto], as ações de vocês serão tipificadas como terrorismo. Ou vocês se enquadram e se submetem às leis ou vão fazer companhia ao cachaceiro lá em Curitiba [Lula]”. Os militantes do MST (de Stédile) e do MTST (de Boulos) são terroristas?
Putin acaba de fazer aprovar nestes dias, pelo parlamento fantoche da ditadura russa, um tratado de parceria estratégica com o ditador Maduro para, entre outras coisas, combater o... terrorismo. Ele, Putin, há sete anos, já havia chamado os opositores de Maduro (Maria Corina incluída) de terroristas e continua qualificando seus próprios opositores na Rússia como terroristas. O mesmo faz o ditador Erdogan na Turquia. Estão vendo como esse assunto é delicado?
O terrorismo é caracterizado por seu propósito e pelos seus métodos. O propósito do terrorismo é instalar, infundir ou difundir, o terror em populações, atingindo inocentes, com objetivos políticos. Os métodos do terrorismo são as ações violentas que atentam contra a vida, restringem brutalmente a liberdade ou impõem sofrimentos aos semelhantes, mas também visam causar perdas materiais e desorganizar a economia.
A ONU discute sem sucesso, desde 2004, um acordo para chegar a uma definição política de terrorismo. Um texto antigo em debate, de 1996, já caracterizava terrorismo como “o ato intencional e ilegal que provoca mortes, ferimentos e danos à propriedade pública ou privada, com o objetivo também de causar perdas econômicas, intimidação da população e de forçar um governo ou uma organização internacional a tomar ou se abster de uma decisão”.
Mas praticar atos que infundem o terror nem sempre é suficiente para caracterizar uma organização como terrorista. Por exemplo, em guerra mudam-se os critérios. No caso da guerra de secessão americana (1861-1865), quem era terrorista: os confederados ou os yankees? A pergunta procede porque ambos praticaram atentados contra a vida e contra propriedades com objetivo político de infundir o terror em populações indefesas (arrasando comunidades de não-combatentes, queimando plantações, abatendo o gado), mas aí não era terrorismo. Quer dizer que a guerra absolve o terrorismo?
La Résistance, a resistência francesa à ocupação hitlerista, era terrorista? Era uma organização armada, não-regular, não-legal, que praticava atos violentos (matava, sequestrava, mutilava seres humanos, sabotava, explodia bombas etc.) com efeitos claramente propagandísticos: visando atemorizar a população civil para dissuadi-la de colaborar com o nazismo. E aí? Aí vale porque os invasores eram estrangeiros? Quer dizer que o que define terrorismo não é a natureza das ações praticadas e sim os motivos pelos quais foram praticadas? Quer dizer que se ações tipicamente terroristas forem praticadas em defesa da pátria ou da nação – e da soberania nacional – está valendo? Que ética é capaz de resistir a tais critérios?
Além disso, todos os governos autoritários classificam seus opositores mais incômodos como terroristas e, para tornar juridicamente válida essa classificação, tentam criar novas leis (ou modificar leis já existentes) para tipificar como terroristas as ações ofensivas dos que se lhe opõem.
O assunto é espinhoso e exige que nos concentremos no básico. E o básico é o seguinte:
Organizações terroristas sempre têm uma causa político-religiosa (incluídas aí as religiões laicas, como certas ideologias revolucionárias). Na verdade o terrorismo é, a rigor, uma via antipolítica para alcançar algum objetivo não-mercantil (ou extra-mercantil).
Facções criminosas não são organizações terroristas. Elas não têm causa nenhuma. Não se vê “soldados” do narcotráfico (ou “trabalhadores do narcotráfico”, segundo Gustavo Petro) sacrificando suas vidas para atingir um objetivo. Por exemplo, se imolando em praça pública ou detonando um colete de explosivos no meio de uma multidão para matar o maior número de pessoas. Não se vê nem mesmo um “lobo solitário” do narcotráfico esfaqueando uma pessoa na rua em nome da sua causa de libertação (como faziam os zelotas na antiga Palestina ocupada pelos romanos) ou em nome da instauração de um califado universal (como os jihadistas do Estado Islâmico ou da Al Qaeda).
Facções criminosas, ditas do narcotráfico, como o Primeiro Comando da Capital e o Comando Vermelho, são organizações com objetivos de lucro. São empresas bandidas. Ou seja, seu comportamento não é presidido por uma racionalidade extra-mercantil. Pode-se dizer que são um novo tipo de organização criminosa para o enfrentamento do qual as forças de segurança não estão preparadas.
A rigor as facções criminosas, em especial o PCC, não são mais nem organizações dedicadas ao tráfico de drogas como seu negócio principal. São uma espécie de máfia (amoral, mas sem familismo), de base prisional (parte de seus principais comandantes estão protegidos dos seus concorrentes nas prisões, sob custódia do Estado), que lucram com a venda e a cobrança ilegal de serviços, a imposição de taxas sobre negócios privados e a extorsão da população capturada em seus territórios.
Segundo artigo de Arthur Trindade, publicado no Correio Braziliense de ontem, “um relatório do Ministério da Justiça apontou que, em 2024, existiam 88 facções de base prisional no Brasil. Sendo que 72 delas têm atuação local como os Bala na Cara, do Rio Grande do Sul, e o Comboio do Cão, do Distrito Federal. Há 14 facções regionais que atuam em mais de dois estados como o Comando da Fronteira, a Família do Norte e os Guardiões do Estado. O relatório também aponta a existência de duas facções nacionais: o Primeiro Comando da Capital e o Comando Vermelho. Elas estão presentes em quase todos os estados e têm conexões internacionais”.
Fala-se de uma coordenação entre governos federal e estaduais para enfrentar o crime organizado. Não basta. A situação chegou a tal ponto que é necessário um verdadeiro pacto social. Por mais que se aumente a repressão, a inteligência e os recursos, isso não bastará. É necessária a participação da sociedade e, inclusive, a colaboração das populações sequestradas nos territórios dominados pelas facções (muitas vezes na forma de resistência que não pode se revelar). Todavia, governos populistas, ditos de esquerda ou de direita, não são capazes de promover nada disso. Os de esquerda continuam acreditando que a criminalidade deriva da desigualdade social - o que leva à uma perigosa leniência, como se os criminosos fossem rebeldes primitivos que só existissem em razão da brutal desigualdade social e da exploração econômica, da opressão política e da dominação e discriminação ideológica das elites, dos capitalistas, dos imperialistas, dos neocolonialistas, sobre os trabalhadores ou o povo pobre. Os de direita continuam acreditando que existem os homens do bem e os homens do mal e que os primeiros devem exterminar os segundos pela força bruta, extirpando as maçãs podres da cesta - o que é a barbárie.
Definir as facções criminosas como organizações terroristas é uma armadilha autoritária. É conveniente para os que acham que se trata de eliminar fisicamente os bandidos (na base do “bandido bom é bandido morto”, ao arrepio das normas que regem os Estados democráticos de direito). Ninguém se escandaliza quando forças de segurança policiais ou militares abatem a tiros um terrorista, seja em Telavive, em Chicago, em Londres ou Amsterdã. Ninguém cobra que o terrorista seja preso, após a leitura de seus direitos e apresentado a um juiz. Há um consenso (tácito) sobre isso, que atravessa as ditaduras e chega até às mais plenas democracias liberais.
Mas matar os membros das facções criminosas não resolve o problema. Mil chacinas policiais ou militares não resolverão o problema. Cada “soldado” morto no narcotráfico será substituído rapidamente por outro. Cada “comandante” morto será sucedido por outro. Antes de qualquer coisa porque, a despeito dos riscos imensos, o negócio é muito lucrativo. E também porque o ambiente configurado nas favelas e periferias é favorável à instalação e replicação de uma cultura que valida, aos olhos de parte das comunidades, tal comportamento. Os feitos dos “heróis insurgentes” dos morros são cantados em prosa ou verso por artistas populares, cujas músicas são ouvidas por todos, crianças, jovens, adultos e idosos que nada têm a ver com o crime. Sim, o que estou dizendo é que há base social que permite que esse tipo de organismo nasça, cresça, se desenvolva e se reproduza.
Vários fatores combinados permitiram (e continuam permitindo) o surgimento (e a proliferação) desse tipo de organização criminosa. O principal desses fatores é uma depressão no campo interativo que extermina velozmente capital social. CV, PCC e Milícias surgem desse black hole. Uma deformação do tecido da sociedade - e uma degeneração do Estado inclusive (sobretudo no caso das milícias, que não surgem por ausência de Estado já que são uma espécie de dark side do próprio Estado). As facções criminosas do narcotráfico são uma degeneração do modo de agenciamento chamado mercado, assim como as milícias são uma degeneração do modo de agenciamento chamado Estado. Mas esse é assunto para um próximo artigo.



