A busca por uma esquerda democrática
É possível salvar uma "verdadeira" esquerda (democrática)?
O que chamam de esquerda é hoje, majoritariamente, o neopopulismo (o novo populismo de esquerda do século 21). Aqui na América Latina: Hugo Chávez na Venezuela, Lula e Dilma no Brasil, Rafael Correa e Moreno no Equador, Evo Morales e Arce na Bolívia, Fernando Lugo no Paraguai, Cristina Kirchner e Fernández na Argentina, Maurício Funes e Cerén em El Salvador, López Obrador no México, Manuel Zelaya e Xiomara em Honduras, Gustavo Petro na Colômbia - além de Nicolás Maduro na Venezuela e Daniel Ortega na Nicarágua, que viraram ditadores. E além, é claro, de uma exceção, por não ser propriamente populista: o ditador Miguel Díaz-Canel, de Cuba, uma remanescência marxista-revolucionária (castrista) do século passado. Com exceção de Cuba, tudo isso compõe a esquerda populista, majoritária e majoritarista, hegemônica e hegemonista.
E o que também chamam hoje de esquerda é, minoritariamente, a esquerda marxista revolucionária remanescente do século 20 (no Brasil, do tipo do stalinista-leninista Jones Manoel, PCB, PCO, UP, PSTU). É uma esquerda classista que, nas suas versões menos extremistas está, em parte, abrigada - às vezes escondida, disfarçando sua real identidade - na barriga da baleia populista.
Há também a esquerda identitarista (woke). Para saber mais sobre ela devemos ler o livro de Yascha Mounk (2023), The Identity Trap. Mounk sustenta que “novas ideias sobre raça, género e orientação sexual constituem uma nova ideologia, que se afasta radicalmente da esquerda tradicional”. Dentre os formuladores de tais ideias ele menciona Michel Foucault, Edward Said, Gayatri Spivak, Derrick Bell e Kimberlé Crenshaw. Todavia, na prática, em países cujos regimes estão parasitados por governos populistas (como o Brasil), essa esquerda identitarista também foi engolida, em boa parte, pela grande baleia neopopulista - que não confia nesse papo de woke porque sabe que ele não dá voto.
Por último há uma esquerda que se diz democrática (não populista, não classista revolucionária e não identitarista - do tipo Gabriel Boric, no Chile), mas ela frequentemente é chamada, à boca pequena, por neopopulistas, revolucionários e identitaristas, de direita (disfarçada).
Existe, sim, essa esquerda que quer ser democrática. Mas ela, além de ser muito minoritária - uma ilha num oceano das esquerdas populista, classista e identitarista - é cadente.
A menos que apliquemos o truque de chamar de esquerda todo mundo que não é rotulado como sendo de direita (ou de extrema-direita, como parece estar na moda). Aí vamos passar a designar líderes de democracias liberais, como o social-democrata, Olaf Scholz, da Alemanha, de esquerda. Outra social-democrata, a Mette Frederiksen, da Dinamarca, virará igualmente de esquerda. O trabalhista Gahr Støre, da Noruega, virará de esquerda. E até o moderado Ulf Kristersson, da Suécia, virará de esquerda. Convenhamos, isso não é sério. Até porque o que caracteriza o comportamento político desses governantes é a defesa da democracia liberal - e todos os regimes citados aqui são democracias liberais - e não o fato de serem ditos “de esquerda” quando comparados aos ditos “de direita (ou “de extrema-direita”, como está na moda).
A pauta de quem defende a ordem liberal e o mundo livre não pode ser a de querer salvar essa ("verdadeira") esquerda, sonhando que um dia ela irá crescer e restaurar as tradições humanistas, de luta por justiça social, equidade e direitos para todos com democracia. Parece um sonho de quem, não tendo mais razões político-sociológicas consistentes para sustentar sua posição, agarra-se a uma herança histórico-antropológica por medo de, se a abandonar, perder o sentido da própria vida. OK!, sonhar é preciso, mas não vamos consertar a realidade com base no sonho.
Todavia, enquanto continuarmos trabalhando com esse esquema interpretativo (esquerda x direita), estaremos contribuindo para degenerar a política como continuação da guerra por outros meios (a fórmule-inverse de Clausewitz-Lenin).
Tudo bem se houvesse uma esquerda realmente democrática, que não achasse que a história tem leis que podem ser conhecidas a priori (ou melhor, ex ante à interação) por quem tem a teoria e o método corretos de interpretação da realidade (a religião laica chamada marxismo e seus derivativos). E tudo bem se essa esquerda não achasse que a luta de classes é o motor da história e que o sentido da política não é a liberdade e sim a ordem, quer dizer, que a política existe para implantar uma ordem mais justa, tendo, para tanto, que mover um combate contra os responsáveis pela manutenção de uma ordem que avaliam como injusta. Mas essa esquerda, desvencilhada do modo marxista de pensar e agir, se existe, não é uma força política expressiva. E se existisse com expressividade não faria sentido chamá-la de esquerda. Por isso é ocioso tentar salvar uma "verdadeira" esquerda democrática.
Só tem sentido manter as noções de esquerda e direita como conceitos operativos da política, se a política deixar de ser uma questão de modo (modo de regulação de conflitos) e passar a ser uma questão de lado (de estar do lado certo da história em luta contra o lado errado). O problema é que isso não é muito compatível com os princípios liberais da democracia, para os quais não se trata de ter uma ordem prefigurada para colocar no lugar da ordem dos outros e sim de apostar que, da livre interação dos cidadãos, novas ordens emergirão, bottom up.
A minoria esquerda democrática é na verdade democracia liberal. Que interessante.