Diogo Dutra, Inteligência Democrática (30/06/2024)
Em tempos de polarização política extrema e degradação do tecido social, a resistência democrática precisa se reinventar. É essencial explorar alternativas que confrontem, constranjam e proponham mudanças no comportamento político, mas é preciso fazer isso sem recorrer a métodos impositivos ou violentos. E mais, é preciso fazer isso indo além dos meios tradicionais, via representantes eleitos e partidos políticos, que, por mais que ainda desempenhem um papel importante, se mostram insuficientes diante de movimentos que se disseminaram na base da sociedade e atuam com uma velocidade impressionante via mídias sociais.
Política como guerra: um caminho destrutivo
A política, muitas vezes tomada como "guerra por outros meios", gera uma dinâmica profundamente prejudicial à democracia. Ao identificar o processo eleitoral como se fosse o único elemento que configura uma democracia, normalizamos a disputa adversarial durante períodos não-eleitorais e sustentamos a transformação de adversários em inimigos. O incentivo constante da dinâmica do "nós contra eles", além de minar a base da amizade cívica fomentando o caldo de ressentimento que observamos hoje, só serve à manutenção das estruturas de poder político-partidárias como estão.
Essa abordagem não apenas desumaniza o outro, que hoje são nossos vizinhos e familiares, mas também impede a construção de uma sociedade mais justa e colaborativa. É imperativo redefinir a política como um espaço de colaboração e amizade cívica, em vez de uma arena de guerra em eterna luta para "salvar-nos de algum mal".
Superando a política do ressentimento
Hannah Arendt (1958), em sua obra "A Condição Humana", argumenta que a verdadeira política surge da ação coletiva e da capacidade humana de iniciar algo novo. Arendt destaca a importância do espaço público como um lugar onde os cidadãos podem agir em conjunto e discutir, sem reduzir o outro a um inimigo. Ela alerta contra a politização da guerra e a guerra como política, ressaltando que essa abordagem destroi o tecido social e a confiança mútua, essenciais para a democracia. A inspiração em Arendt fortalece a necessidade de superar a política do ressentimento e construir uma esfera pública baseada no respeito e na colaboração.
O movimento anti-política, caracterizado pela terceirização da culpa e cancelamento do diferente, gera um ciclo de ressentimento que pode levar à implosão do sistema. A política deve ser um espaço de regulação de conflitos, gerando mais potência e possibilidades de criação conjunta. O desafio é interromper esse ciclo através de ações genuínas que busquem soluções criativas e inesperadas. Uma inspiração relevante para esse impasse vem da história de Gandhi sob a ótica de uma desobediência civil criativa, ou seja, que uma mudança pode surgir não pela formação de novos herois revolucionários, mas uma miríade criativa de desobedientes que, inspirados pela razoabilidade e criatividade, poderão construir novas formas de resistência democrática.
A desobediência civil criativa
A primeira parte dessa reflexão veio a partir do filme Gandhi (1982) - disponível no Netflix - que narra a história de vida e as transformações sociais desencadeadas pelo posicionamento firme e corajoso do advogado Mohandas Karamchand Gandhi. Gandhi não acreditava na eficácia das ações revolucionárias violentas. No entanto, ele também não adotava uma postura passiva perante a opressão. Gandhi possuía um poder criativo incrível para elaborar ações de desobediência civil que provocavam efeitos políticos extremamente eficientes. Ele acreditava firmemente que a violência só levava a escaladas de destruição e ódio, mantendo essa postura até mesmo na quase-guerra civil que surgiu na Índia após a saída dos ingleses.
O que mais chama atenção é que, ao invés de se inspirar e replicar as atitudes criativas de Gandhi, muitas pessoas o transformaram em um espécie de guru, de líder que daria os caminhos e as respostas. Aparentemente, Gandhi nunca quis fundar movimento algum e nem se via como um guru, mas aceitava com paciência e amor as responsabilidades que entendia serem dele. Por que a gente sempre está buscando um líder para nos salvar e conseguir realizar mudanças? A resposta inventiva para uma resistência democrática está em não esperar que surja um líder-ativista como Gandhi, mas sim de inspirar e provocar a própria criatividade nos processos de interação e desobediência sintonizando outros no caminho que percebam a necessidade de se posicionar contra essa escalada polarizante.
Estruturas paralelas e ação coletiva
A proposta de Václav Benda para a criação de estruturas paralelas na Tchecoslováquia oferece uma estratégia inovadora e inspiradora para resistências em campos hegemônicos. Benda sugeriu a formação de uma "Polis Paralela" como forma de resistência que não necessariamente leva ao conflito direto com o poder político, mas que pressiona as estruturas oficiais a se reformarem ou se desintegrarem. Em um documento histórico chamado Carta 77 ele coloca: “Estou tentando sugerir uma terceira maneira de retificar a situação na aldeia. A maioria das estruturas relacionadas com a vida do município (ou seja, a vida política) funciona de uma forma ou de outra, seja de forma completamente insuficiente ou mesmo prejudicial. Sugiro, portanto, que juntemos forças na criação gradual de estruturas paralelas, capazes de substituir, pelo menos em parte, as funções geralmente benéficas e necessárias que faltam, sempre que possível, as estruturas existentes também devem ser utilizadas e ‘humanizadas’.” Esse conceito pode ser adaptado ao contexto brasileiro atual, promovendo a criação de redes e espaços de ação pública que rejeitam as polaridades como dinâmica política, buscando a construção de uma nova forma de interação cívica.
Meios não-partidários de resistência
Há alguns anos, ainda no governo Bolsonaro, começamos uma reflexão sobre meios mais ativos tanto de parar Bolsonaro quanto de resistir ao avanço do bolsonarismo na sociedade, tendo a democracia como ponto de vista. Formalmente, o que se faz é oposição partidária e parlamentar, envolvendo nossos representantes eleitos no Congresso Nacional e a opinião pública, incluindo imprensa, influenciadores e mídias sociais. Na época, parar Bolsonaro não significava depô-lo por meios ilegais, nem necessariamente por meios legais (como o impeachment), mas significava impor-lhe um constrangimento tão forte que o obrigasse a mudar de comportamento. Hoje parece que a investida hegemônica lulopetista precisa de esforço igual, não só pela deterioração democrática que o próprio coloca, mas pelo risco real de retorno de um bolsonarismo (ou alguma derivação pior) que este incentiva por meio da polarização.
Na época discutimos que em relação ao avanço do bolsonarismo na sociedade, a resistência devia ser informal, com cidadãos livremente atuando – legal e legitimamente – em todos os lugares onde isso fosse possível. O movimento bolsonarista tem base social e fôlego para durar por muito tempo, independentemente do destino da família Bolsonaro no poder. Tanto na oposição formal quanto na informal, é preciso resistir a dois outros fatores: (i) o lulopetismo remanescente na sociedade, que tenta hegemonizar, deturpar e instrumentalizar para seus próprios interesses a resistência ao bolsonarismo, e (ii) uma esquerda revolucionária que romantiza o terrorismo e menospreza a democracia.
Durante o ano de 2019, exerci essa resistência, tanto ao bolsonarismo quanto ao lulopetismo, através da exposição pública (online e offline) de minha opinião, muitas vezes bem embasada por estudos e leituras pessoais, e apoiada em um conjunto de pessoas com quem me sintonizei ao longo do ano. Na transição de 2019 para 2020, provocado por uma série de leituras, documentários e filmes que consumi, fui cada vez mais me perguntando de quais maneiras mais ativas seria possível atuar sem (i) ser cooptado por algum movimento com o qual eu não concorde ou venha me frustrar no futuro com suas lideranças, ou (ii) cair no clichê de um trabalho voluntário como justificativa eventualmente hipócrita para o “estou fazendo alguma coisa”. Durante todo governo Bolsonaro e agora em Lula 3 me envolvi em algumas iniciativas importantes como "As Casas da Democracia" e no crowdfunding do livro "Como as democracias nascem" de Augusto de Franco (2023), além de publicar recorrentemente em minhas redes sociais e interagir sempre que possível em conversações sobre política.
Acredito que não precisamos de mais um partido, e que esforços recentes já foram feitos com a Rede e com a experiência fracassada do Novo. Uma saída criativa foi o surgimento dos movimentos supra-partidários (RAPs, RenovaBR, Acredito etc.) os quais admiro muito, mas que já estão atuando de maneira estável e têm seus próprios desafios de legitimidade pela frente. Alguns inclusive já acabaram, ou mantêm atividades tímidas, o que não tira o mérito da inovação política que trouxeram e que ainda reverbera no espaço político-público. Ainda sim, a pergunta que sempre volta, dada a deterioração rápida do tecido social e a capacidade destrutiva da polarização, é: quais alternativas para uma resistência mais ativa?
Recentemente, e aos poucos, surgiu um conjunto de pessoas que se aproximaram após a publicação do artigo "Livres da Polarização" dos autores Roberto Freire, Eduardo Jorge, Gilberto Natalini e Augusto de Franco publicado no Estadão no dia 11 de maio de 2024. Esse grupo de pessoas vem tentando se auto-organizar para inventar formas de agir politicamente que ajudem a fermentar e metabolizar o processo atual. É preciso saber que será um processo lento e longo, e que qualquer tentativa de acelerar pode desvirtuar o propósito e nos colocar no lugar de sempre, que busca líderes revolucionários para destruir o "inimigo" da democracia. No final do dia o "inimigo somos nós mesmos" e é aí que tudo se começa e se desdobra.
Conclusão
A resistência democrática, com cidadãos livremente atuando, deve ser feita em qualquer lugar onde isso for possível. É fundamental interagir em muitos grupos e não pertencer a apenas um, preferencialmente de forma presencial, mas também utilizando as mídias sociais. O maior desafio do ativismo político em tempos sombrios é promover uma metamorfose através de uma miríade criativa de desobedientes. É essa criatividade na desobediência que pode efetivamente confrontar e transformar a atual dinâmica política, construindo uma sociedade mais justa e colaborativa.
Excelente! Importante reflexão, pois democracia não é o regime de eleger e manter tiranos, lideres absolutos e infaliveis, é exatamente o oposto, é um regime para não sermos sujeitos de nenhum senhor, e dentro da relatividade humana negociarmos caminhos e soluções, e os destinos de nossa sociedade de forma pacifica, de forma local e global, conjugando o maior numero de vozes possivel.
Rapaaazzzzz! Amei, adorei mesmo este artigo! Quanta lucidez. Vejam as formas e experiências de fazer as coisas sem precisar criar instituições, movimentos, que deram certo, que existiram, que funcionaram. Como a “política-do-não-fazer” funciona efetivamente criando “zonas libertas” dentro do espaco-tempo dos fluxos” já existentes ou a surgir construindo apenas em cima de conversações sobre comportamentos políticos humanizantes sobre uma nova forma de fazer politica. Como isso tem um poder enorme de desconstituir programações e comandos verbais polarizastes nas nossas consciências - isso é humanização pura!!! Maravilha. Devemos aprofundar pesquisas e conversações humanizastes nesta vibe pazeantemente linda! Vejam o poder de transformação que isdo pode trazer nos ambientes de convivência social: família, amigos, vizinhos, locais de trabalho, nas moléculas da sociedade, portanto, por fora dr partidos e instituições também. Podendo ser dentro de partidos e instituições políticas tradicionais onde isso couber!!’