A democracia tem inimigos
Leiam a íntegra do artigo de Mike Brock no substack Notes from the circus (19/06/2025), intitulado "A democracia tem inimigos". Há uma tradução publicada no substack Projeto Villa que reproduzo abaixo.
Depois de assegurarmos a nossa própria democracia, o dever não termina—ele recomeça. Devemos justiça àqueles cujas liberdades são esmagadas por regimes autoritários que se intrometeram em nossos assuntos, oprimiram seus cidadãos e minaram princípios democráticos em todo o mundo.
Perdão não está em pauta para tiranos. Justiça, sim.
Vou deixar claro o que isso significa—e o que não significa. Não se trata de retomar o intervencionismo cínico que marcou a política externa americana por décadas, em que apoiamos ditadores convenientes e travamos guerras equivocadas que serviram a interesses estreitos, não a valores democráticos. Os fracassos passados dos EUA—bancar regimes autoritários quando era conveniente, conduzir operações de mudança de regime por vantagem estratégica em vez de direitos humanos—geraram ceticismo legítimo sobre o engajamento global americano.
Mas a escolha não é entre projeção de poder cínica e abdicação moral. É entre aprender com esses erros para nos engajarmos de forma mais ética ou abandonar totalmente o engajamento enquanto os autoritários preenchem o vácuo. E sim, isso pode significar o uso de força militar quando necessário—não para expansão imperial ou conveniência estratégica, mas para prestar contas aos princípios democráticos que esses regimes atacaram.
Trata-se de responsabilizar regimes que se fizeram inimigos dos valores democráticos por suas ações, não de impor democracia a populações que a rejeitam. Quando governos autoritários interferem em nossos processos democráticos ao mesmo tempo que esmagam a dissidência em casa, quando constroem Estados de vigilância com tecnologia democrática roubada enquanto exportam opressão globalmente, perdem qualquer pretensão de proteção sob princípios que violam sistematicamente.
Sei o que você está pensando: “Isso soa como neoconservadorismo. Isso soa como a doutrina Bush. Isso soa como guerras sem fim pela democracia.” Eu não me importo com o que parece para você. Já testemunhamos as consequências da falha moral, e não participarei das ilusões confortáveis que criaram esta crise.
Ignorar enquanto o Partido Comunista Chinês acumulava poder por meio de inovação americana roubada, com capitalistas ocidentais cúmplices vendendo-lhes as ferramentas da opressão. Ignorar enquanto a República Popular da China se transformava em um panóptico de vigilância em IA que faz as fantasias mais sombrias de Orwell parecerem ingênuas. Ignorar enquanto Putin estruturava uma rede global de corrupção que alcançou todas as nações democráticas.
Isso é absolutamente inaceitável.
Você acha que “soberania” é uma categoria moral que supera essas considerações? Eu discordo. E vou explicar por que sua concepção de soberania não é apenas equivocada—é moralmente falida.
A Falsa Escolha
O establishment de política externa nos enredou num falso binário: ou respeitamos a soberania nacional e permitimos que regimes autoritários façam o que quiserem dentro de suas fronteiras, ou nos tornamos cruzados imperiais impondo democracia à força. Isso é covardia intelectual disfarçada de análise sofisticada.
Existe um terceiro caminho, e é o único moralmente coerente: responsabilidade democrática para quem ataca a democracia.
Quando Vladimir Putin interferiu nas eleições americanas enquanto reprimia dissidentes na Rússia, perdeu qualquer direito de exigir não-interferência em assuntos russos. Quando o Partido Comunista Chinês roubou tecnologia americana enquanto construía campos de concentração para uigures, tornou a opressão doméstica um problema legítimo para toda democracia que foi lesada. Quando o regime iraniano financiou terrorismo no exterior enquanto enforcava manifestantes em casa, declarou guerra ao princípio da dignidade humana que a soberania deveria proteger.
Não são questões separadas. É o mesmo projeto autoritário operando em frentes diferentes—destruir valores democráticos onde quer que existam, seja em Teerã, Moscou, Pequim ou Washington.
O Jogo de Conchas da Soberania
Quem invoca “soberania” para defender regimes autoritários joga um jogo de esconde-esconde moral. Querem que você acredite que respeitar fronteiras significa ignorar o que acontece dentro delas, que a não-interferência é sagrada e supera qualquer outra consideração.
Mas soberania nunca foi criada para proteger opressão—foi criada para proteger autodeterminação. E não há autodeterminação sob regime autoritário, apenas a eliminação sistemática da capacidade de autodeterminação.
Quando invocamos soberania para proteger regimes que negam direitos humanos básicos, não defendemos princípio—defendemos o direito dos tiranos a tiranizar sem consequências. Usamos o direito internacional como escudo justamente para as forças que o tornam vazio de sentido.
O Partido Comunista Chinês não respeita soberania—viola-a diariamente com guerra cibernética, coerção econômica e interferência sistemática. Putin não respeita soberania—baseou toda sua política externa em violá-la com assassinatos, manipulação eleitoral e agressão territorial. O regime iraniano não respeita soberania—exporta terrorismo e opressão por onde alcança.
E, mesmo assim, quando democracias cogitam responsabilizar esses regimes, de repente a soberania se torna sagrada. O princípio que eles mesmos violam vira escudo contra consequências.
Isso é incoerência moral travestida de princípio legal.
À esquerda anti-imperialista e à direita pró-autoritária que dizem que a interferência americana em outros países justifica Xi Jinping e Putin fazerem o mesmo, tenho apenas uma coisa a dizer: “Não faço ideia do que diabos vocês estão falando.”
A Catástrofe da Transferência de Tecnologia
O exemplo mais condenável de nossa falha moral é o que permitimos na transferência de tecnologia a regimes autoritários. Durante décadas, corporações e governos ocidentais facilitaram a entrega de tecnologia de ponta ao Partido Comunista Chinês, sabendo perfeitamente como seria usada.
Entregamos as ferramentas para construir o mais sofisticado Estado de vigilância da história. Ensinamos a usar IA para controle populacional. Fornecemos os sistemas que hoje rastreiam, monitoram e controlam mais de um bilhão de pessoas. Não apenas viramos o rosto—participamos ativamente da construção da infraestrutura da opressão.
E fizemos isso por lucro. Empresas americanas venderam as próprias vantagens tecnológicas a um regime que sabiam que as usaria para oprimir e minar interesses americanos. Investidores ocidentais financiaram empresas chinesas ao serviço do Estado de vigilância. Executivos de tecnologia compartilharam segredos com um governo que constrói campos de concentração.
Isso não foi mero erro de julgamento—foi colaboração moral com a opressão autoritária. E a desculpa? “Negócios são negócios. Política é política. Soberania impede interferência no que outros países fazem internamente.”
Besteira.
Quando você fornece ferramentas de opressão, torna-se cúmplice dessa opressão. Quando lucra com o autoritarismo, torna-se responsável por suas consequências. Quando fortalece regimes que atacam a democracia, torna-se inimigo da democracia.
A ficção confortável de que negócios e política são esferas separadas transformou o capitalismo ocidental no mecanismo de financiamento do autoritarismo global. O princípio da soberania virou desculpa para abdicação moral.
A Rede de Putin
Vladimir Putin não só interferiu nas eleições americanas—construiu uma rede global de corrupção que penetrou em cada instituição democrática possível. Financiou movimentos de extrema-direita na Europa, corrompeu políticos em dezenas de países, armou redes sociais para espalhar desinformação.
Enquanto isso, destruía a sociedade civil na Rússia: assassinando jornalistas, envenenando dissidentes, fraudando eleições, prendendo líderes de oposição e transformando a nação num Estado mafioso ao serviço do poder pessoal.
O princípio da soberania diz que devemos respeitar fronteiras russas e deixar Putin fazer o que quiser dentro delas. Mas Putin nunca respeitou fronteiras alheias. Ele fez dos assuntos internos de cada democracia seu negócio por meio de interferência e corrupção sistemáticas.
Quando um regime exporta autoritarismo, perde qualquer alegação de proteção pela soberania. Quando um ditador torna os processos democráticos de outros países seu alvo, faz de sua própria autocracia um alvo legítimo de intervenção democrática.
O Estado Terrorista Iraniano
O regime iraniano passou décadas financiando terrorismo no Oriente Médio enquanto enforcava manifestantes nas praças de Teerã. Bancou Hamas, Hezbollah e outras dezenas de grupos terroristas, oprimindo mulheres, minorias e qualquer voz por liberdade.
Tramou assassinar autoridades americanas em solo americano. Forneceu armas que mataram soldados dos EUA. Financiou as forças que os EUA gastaram trilhões e milhares de vidas combatendo.
Tudo isso sob a proteção suposta da soberania. Enquanto a comunidade internacional tratava a opressão do povo iraniano como “assunto interno”.
Mas não existem assuntos internos quando a opressão é financiada por terrorismo externo. Não há direitos soberanos para governos que violam sistematicamente a soberania alheia. Não há proteção para regimes que declararam guerra aos princípios que a soberania deveria resguardar.
O Genocídio Chinês
O Partido Comunista Chinês está conduzindo genocídio contra o povo uigur enquanto ergue o aparato de controle mais sofisticado da história. Criou um sistema de opressão tão total, tão tecnologicamente avançado e desumanizante que representa uma nova forma de autoritarismo.
Não é apenas opressão interna—são experimentos de controle humano exportados a outros regimes autoritários. Estão construindo o protótipo do totalitarismo digital que cada aspirante a ditador estuda.
E fazem isso com tecnologia roubada do mundo democrático—ferramentas criadas para expandir possibilidades humanas, agora usadas para eliminar a agência humana.
O princípio da soberania diz que isso é assunto interno da China. Que o destino dos uigures não é problema do mundo democrático. Que genocídio cometido com nossa tecnologia roubada é protegido pelo direito internacional.
Isso não é apenas cegueira moral—é suicídio moral. Ao permitir que a soberania proteja o genocídio, tornamos a soberania sem sentido. Quando tratamos desumanização sistemática como assunto interno, abandonamos nossa própria humanidade.
A Obrigação Democrática
Democracia não é só forma de governo—é compromisso moral com dignidade e autodeterminação humanas. Quando regimes autoritários atacam a democracia fora e a negam dentro, declaram guerra a esse compromisso. Fazem-se inimigos do princípio que dá legitimidade à própria soberania.
O espírito da democracia deve reconhecer que está sob cerco. E sim, deve empunhar a espada e apontá-la para fora.
Nosso dever não é impor democracia à força—é defender a democracia contra quem a ataca. Nossa responsabilidade não é invadir cada país não democrático—é responsabilizar aqueles que invadiram nossos processos democráticos.
Os regimes que interferiram em nossas eleições, corromperam nossas instituições, roubaram nossa tecnologia e financiaram nossos extremistas perderam qualquer proteção sob princípios que violaram. Tornaram-se responsáveis perante os valores democráticos que atacaram.
Não se trata de espalhar democracia em todo lugar—mas de defendê-la contra quem a tem como alvo. Não se trata de impor nossos valores a populações resistentes—mas de apoiar bilhões que vivem sob regimes que atacam nossos valores enquanto lhes negam liberdade.
Justiça, Não Perdão
Disse no início que perdão não está na mesa para tiranos. Esclareço agora o que justiça significa neste contexto.
- Sanções direcionadas a autoridades, oligarcas e cúmplices que lucram com opressão: bloqueio de bens, proibição de viagens, exclusão do sistema financeiro ocidental.
- Responsabilização jurídica internacional em tribunais como o TPI por genocídio, crimes contra a humanidade e opressão sistemática—sem imunidade diplomática para criminosos de guerra.
- Apoio tecnológico e financeiro a dissidentes, sociedade civil e movimentos democráticos: comunicação segura, mídia independente, caminhos para resistência interna.
- Isolamento econômico de regimes que exportam autoritarismo: cortar comércio que financia opressão, cessar transferências tecnológicas que alimentam Estados de vigilância.
- Ameaça crível e, quando necessário, uso de força militar contra regimes que representam ameaça existencial aos valores democráticos e à dignidade humana—não por conquista, mas por responsabilidade.
Justiça é reconhecer que regimes autoritários não são governos legítimos, mas forças ocupantes que mantêm seus povos reféns. Apoiar a libertação dos oprimidos não é imperialismo—é solidariedade com o desejo humano de dignidade.
A Ilusão Realista
Os “realistas” dirão que isso é idealismo ingênuo. Que devemos aceitar o mundo como é. Que trabalhar com regimes autoritários é mais prático que confrontá-los. Que estabilidade importa mais que liberdade.
Esses realistas nos deram Trump. Permitiram que o PCC construísse um Estado de vigilância com tecnologia americana roubada. Viram Putin erguer uma rede de corrupção global e chamaram de “engajamento pragmático”. Trataram genocídio como questão comercial e interferência eleitoral como custo de fazer negócios.
Seu realismo provou ser a posição mais irreal possível. Sua estabilidade gerou caos. Seu pragmatismo fortaleceu forças que ameaçam tudo que diziam proteger.
A posição verdadeiramente realista é reconhecer que regimes autoritários são inerentemente instáveis, agressivos e ameaçadores a qualquer sociedade que valorize dignidade humana. Apaziguá-los não cria paz—cria condições para conflitos maiores. Ignorar seus crimes não os faz desaparecer—torna-os mais fáceis de cometer.
O Caminho Adiante
Uma vez restaurada a integridade democrática nos EUA—e nós a restauraremos—o trabalho não termina; ele se expande. Porque as ameaças à democracia americana não se originaram apenas dentro de nossas fronteiras e não podem ser derrotadas apenas dentro delas.
Devemos justiça aos milhões que vivem sob regimes que atacaram nossa democracia enquanto esmagavam a deles. Devemos responsabilização aos bilhões que sonham com as liberdades que esses regimes tentaram destruir nos EUA e negam em casa.
Isso não significa guerras sem fim por vantagem estratégica nem operações cínicas de mudança de regime. Significa engajamento baseado em valores democráticos, não em interesses estreitos. Significa distinguir entre ação militar para responsabilidade moral e ação militar para expansão imperial.
Significa reconhecer que, num mundo interconectado, nenhuma democracia está segura enquanto o autoritarismo prosperar em qualquer lugar. Que a tecnologia usada para oprimir milhões será eventualmente usada contra povos livres. Que as redes de corrupção erguidas para minar democracias estrangeiras acabarão corroendo toda instituição que tocarem.
Significa entender que soberania sem dignidade humana é vazia, que fronteiras sem liberdade são apenas limites de prisões maiores, e que direito internacional que protege opressão não é direito—é abandono organizado da justiça.
O Imperativo Moral
Dois mais dois são quatro. O dia tem vinte e quatro horas. E regimes autoritários que atacam a democracia enquanto oprimem seu povo fazem-se inimigos da dignidade humana.
A posição confortável é tratar isso como problema alheio, esconder-se atrás de soberania e não-interferência enquanto pessoas sofrem sob regimes que ignoram tais limites. Fingir que o que acontece a outros não nos afeta, que a opressão deles não está ligada à nossa segurança, que a liberdade deles não se conecta à nossa.
Essa posição confortável criou esta crise. Essa abdicação moral permitiu que o autoritarismo se espalhasse, se fortalecesse e penetrasse nossas próprias instituições.
A verdade desconfortável é que estamos todos conectados—por tecnologia, economia, fluxos globais de informação. Num mundo assim, não existem assuntos puramente internos quando envolvem a negação sistemática da dignidade humana.
A escolha não é entre intervenção e não-intervenção. É entre engajamento consciente com as implicações morais do mundo interconectado e cumplicidade inconsciente com forças que querem destruir tudo o que valorizamos.
Eu escolho engajamento. Escolho responsabilização. Escolho justiça para os oprimidos e consequências para os opressores.
Chame como quiser. Só não chame de opcional.
A revolução é honestidade linguística. A rebelião é chamar as coisas pelo nome. A resistência é recusar a erosão eufemística da clareza moral.
Autoritarismo é autoritarismo. Opressão é opressão. Genocídio é genocídio.
E nossa obrigação de nos opor a eles não termina em nossas fronteiras, assim como a ameaça que representam não começa nas deles.
Lembre-se do que é real.