A difícil situação dos democratas no Brasil
Os bolsonaristas insistem na anistia e elegibilidade para Bolsonaro porque não têm outra saída. Não estou falando dos políticos fisiológicos do centrão, que estão pegando uma carona na proposta de anistia apenas para negociar vantagens, eleitorais e outras; ou para conseguir impunidade como prevê uma proposta paralela em votação congressual no mesmo bojo. Me refiro aos bolsonaristas mesmo.
Na via do populismo-autoritário ou nacional-populismo, pela qual enveredaram, os bolsonaristas precisam de um líder como Bolsonaro (capaz de mesmerizar multidões a partir da raiva e do ressentimento contra "o sistema") porque não têm um projeto (construtivo), só propostas reacionárias (destrutivas).
Também não têm mais formuladores políticos (com a morte de Olavo) e não organizaram um partido (porque acharam que isso não era necessário para conduzir a revolta do "verdadeiro povo" contra o establishment).
Mas estão diante de um impasse (e de uma contradição): ainda precisam usar os mecanismos do sistema (como as eleições) e não podem escapar de suas regras (as leis) para chegar ao governo e então, a partir do poder de Estado, dar um curto-circuito no próprio sistema - seja através de um golpe ou de um autogolpe (ambos, porém, à moda antiga - pois lhes faltam os instrumentos para implantar uma estratégia de conquista progressiva de hegemonia que bypasse as leis e os mecanismos de freios e contrapesos do regime democrático).
A situação de Bolsonaro e dos súditos fiéis de sua famiglia (os bolsonaristas stricto sensu) é muito diferente da situação de Trump: lá, nos “esteites”, existem muitos pensadores que, durante décadas, vêm formulando políticas para autocratizar a democracia liberal (nos EUA e no mundo); lá existe um partido, com secular enraizamento social, que foi completamente tomado pela tendência populista-trumpista (MAGA). Aqui não há (quase) nada disso.
Se os bolsonaristas tivessem um partido como o PT (também populista, mas de outro tipo) sua situação seria diferente: mas isso leva um tempo (que eles não tiveram) e exige uma estratégia (que eles não têm e, se tivessem, seriam poucas suas chances de executá-la).
O PT, entretanto, enfrentará em breve um problema semelhante (pelo menos de um ponto de vista): como é também um populismo, precisa de Lula, o líder coim alta gravitatem, o papa-votos - que não é imortal. E como sua estratégia passa por se delongar no governo por vários mandatos sucessivos para lentamente ir alterando, por dentro, o genoma da democracia (trocando-a por cidadania ofertada pelo líder a partir do Estado), tem um compromisso marcado com a derrota quando esse líder (que não fez sucessores à altura, o que seria mesmo impossível) não puder mais competir.
Na ausência de uma via democrática (não-populista) e com a ajuda objetiva do bolsonarismo (e do trumpismo) - que são, hoje, seus principais cabos eleitorais -, o lulopetismo, no curto prazo, tem mais chances de permanecer no governo do que o bolsonarismo de voltar ao governo.
Por pouco tempo, entretanto. Com a saída de cena de Bolsonaro e o declínio do bolsonarismo, o trumpismo terá por aqui pouca influência (a menos que o PT leve o país a entrar numa guerra do lado do eixo autocrático contra o Ocidente democrático - e aí não se sabe o que pode acontecer). Em condições normais de temperatura e pressão, forças políticas de centro - mais ou menos liberais - tendem a ocupar o lugar dos dois populismos que atualmente estiolam o ambiente político brasileiro com uma polarização tóxica. A não ser, como foi dito, que a segunda guerra fria, já em curso, altere completamente a configuração e a dinâmica do arranjo institucional brasileiro e acelere a transição autocratizante em que estamos. Podem apostar: é nisso que o PT aposta.
Conclusão. Sem Bolsonaro, o bolsonarismo tende a fenecer. Sem Lula, o PT ficará mais iliberal e mais revolucionário, não menos. Mas com menos votos, esboroando toda a estratégia de conquista de hegemonia sobre a sociedade a partir do Estado aparelhado pelo partido para se delongar no governo por tempo suficiente.
De qualquer modo, os democratas estamos imprensados entre reacionários disfarçados de conservadores e revolucionários travestidos de "progressistas" - ambos populistas e, como tais, avessos à democracia liberal. Nestas circunstâncias - e como não há democracia sem democratas - é necessário configurar comunidades políticas (redes humanas, mais distribuídas do que centralizadas), verdadeiras "poleis paralelas" (interativas), capazes de gerar novos agentes democráticos (reformistas liberais-inovadores), multiplicando seu número até alcançar o nível crítico necessário para fermentar o processo de emergência de uma opinião pública democrática, de resistir às tiranias e aos processos de autocratização (seja por meio de golpes de Estado ou de conquista de hegemonia) e de ensaiar a democracia como modo-de-vida, usinando padrões democráticos capazes de se replicar, agora e em outras regiões do tempo. Não vejo outra saída.
Candidatos democratas liberais, verdadeiros reformistas inovadores, poderão vir como consequência desses movimentos, pois é uma ilusão achar que há uma pletora deles já disponível na praça. Se houvesse, não estaríamos nesta situação.