A inconsistência da noção de extremismo
Está na moda rotular as forças e os atores políticos de que não gostamos de extremistas. Há os de extrema-direita. E há também os que questionam por que não designamos os que são de esquerda como extrema-esquerda.
Mas o conceito de extremismo virou mais uma arma da luta política em ambientes polarizados do que uma categoria válida de análise.
Se tomarmos como referência a democracia, revela-se de pronto a inconsistência da noção de "extremismo".
Extremistas, no sentido estrito do termo, seriam os que não aceitam o sistema democrático e querem abolir suas regras (por exemplo, por meio de um golpe militar reacionário ou de uma insurreição popular revolucionária). Mas os que não violam abertamente as leis porque usam a democracia (sobretudo o regime eleitoral) contra a própria democracia - como os populistas - não precisam ser extremistas para constituir um perigo para a democracia liberal.
Os adversários da democracia liberal são os populistas (ditos de direita ou de esquerda, tanto faz, embora não sejam iguais: não há simetria e sim isoformismos político-comportamentais). Os populistas são majoritaristas, em geral estatistas e iliberais ou contra-liberais - mas não necessariamente extremistas.
Atenção aqui! O conceito de 'extremista' é pedestre porque está baseado no espectro classificatório vazio 'extrema-direita, direita, centro-direita, centro-esquerda, esquerda, extrema-esquerda'. Ao usar o termo 'extremista' já estamos comprando esse esquema inconsistente. Dizer que alguém está numa posição extrema pressupõe que existam outras posições não-extremas dentro de um mesmo espectro. Mas o espectro em questão pressupõe a divisão básica direita-esquerda como a única ou dominante clivagem.
Ou seja, os adversários da democracia liberal não são apenas os chamados de "extremistas" (ditos de direita ou de esquerda). Lula não é extremista. López Obrador, do México, não é extremista. Zelaya e Xiomara, de Honduras, não são extremistas. Gustavo Petro, da Colômbia, não é extremista. Assim como Evo Morales, da Bolívia e Rafael Correa, do Equador, não foram extremistas. E todos esses neopopulistas (ou populistas ditos de esquerda) se alinharam ou se alinham ao eixo autocrático (Rússia, Bielorússia, China, Coréia do Norte, Irã, Síria, Angola, Cuba, Venezuela, Nicarágua etc.) - que é inimigo aberto da democracia liberal.
Do lado oposto do espectro, há sérias dúvidas de se Erdogan e Modi, chefes de governo da Turquia e da Índia (que são autocracias eleitorais, segundo o V-Dem) podem ser chamados de extremistas, no mesmo sentido em que o termo se aplica a Maximiliam Krah, ex membro da AfD (Alternative für Deutschland) ou a Alexander Gauland e Alice Weidel (que continuam liderando a AfD). Ou a Salvini, da Lega, na Itália. Ou a André Ventura, do Chega, em Portugal. Ou a Santiago Abascal, do Vox, na Espanha. Ou a Jussi Halla-aho do Partido dos Finlandeses. Ou mesmo a Viktor Orbán, da Hungria e Donald Trump, dos EUA - para não falar de Bolsonaro, do Brasil.
Temos agora em tela o caso de Le Pen. Ela é populista, nacional-populista. Nesse sentido é uma adversária da democracia liberal. Se ela fez um movimento tático, por razões eleitorais, para não parecer tão extremista, isso não significa que ela não continue sendo uma adversária da democracia liberal.
E o caso de Meloni. Ela é, igualmente, nacional-populista. Mas entendendo que continuar propagando posições extremistas não a levaria ao governo, fez um movimento de moderação de suas posições. Mesmo que tenha sido uma manobra tática, por razões eleitorais, houve mudança em termos políticos (não, talvez, em termos ideológicos - mas o que interessa na análise política são os resultados políticos, não as crenças confessadas ou inconfessadas dos atores políticos).
Adolf Hitler divergiu de Ernst Röhm (líder da SA) que queria tomar o poder na Alemanha a partir de um golpe de Estado (ou de uma insurreição reacionária). Hitler disse: não, primeiro chegamos ao governo (institucional e legalmente) e só então, depois, tomamos o poder. Foi mais ou menos o que aconteceu. Röhm - pelo menos naquele momento - era mais extremista do que Hitler e, no entanto...
Anna Lührmann e Staffan I. Lindberg (2019), no artigo "Uma terceira onda de autocratização está aqui: o que há de novo nisso?" (Journal Democratization, 01/03/2019) mostraram que "uma 'terceira onda de autocratização', afetando um elevado número sem precedentes de democracias, está em curso. Essa onda se desdobra lenta e gradativamente, dificultando a evidência. As elites dominantes evitam movimentos repentinos e drásticos para a autocracia e, em vez disso, imitam as instituições democráticas, ao mesmo tempo em que gradualmente desgastam suas funções".
Lührmann e Lindberg também constataram que "o arquétipo das inversões dramáticas à autocracia fechada está se tornando raro – assim como as autocracias fechadas. Cerca de metade de todos os países eram autocracias fechadas em 1980, mas em 2017 eles representam apenas 12% dos regimes do mundo. Autocratas contemporâneos dominam a arte de subverter os padrões eleitorais sem romper completamente sua fachada democrática. Alguns rotularam esse fenômeno de 'democracia não liberal'. Assim, a partir de 2017, a maioria dos países ainda se qualifica como democracias (56%) e a forma mais comum de ditadura (32%) são as autocracias eleitorais".
Mais adiante, no referido artigo, citando os casos da Hungria e da Polônia, eles afirmam que "a erosão democrática tornou-se a tática comum durante a terceira onda de autocratização. Aqui, os titulares acessam legalmente o poder e gradualmente, mas substancialmente, minam as normas democráticas sem abolir as principais instituições democráticas. Tais processos representam 70% na terceira onda de reversão democrática..." (veja-se o diagrama acima, publicado no mesmo artigo).
Isso significa que forças e atores políticos não precisam ser extremistas, no sentido estrito do termo, para autocratizar a democracia. Em certo sentido serão mais perigosos se não forem extremistas e, pior ainda, se estiverem travestidos de defensores da democracia. Os populistas que não querem dar golpes de Estado, nem promover insurreições reacionárias ou revolucionárias, mas adotam estratégias de conquista de hegemonia sobre a sociedade a partir do Estado aparelhado por suas forças políticas para se delongar indefinidamente no governos, são os adversários da democracia liberal mais difíceis de enfrentar na contemporaneidade. É este é, precisamente, o caso de Lula e do PT no Brasil.