A Lei Magnitsky é aplicada, em geral, contra indivíduos e entidades de ditaduras. O Brasil não é uma ditadura, ainda que não seja uma democracia liberal (segundo o V-Dem) ou plena (segundo a The Economist Intelligence Unit). O fato de Trump ter errado ao aplicá-la a Alexandre de Moraes, não absolve, nem legitima, ações de Alexandre (e de seus pares, que o defendem corporativamente), ações que extrapolam suas funções e sua jurisdição, além de configurarem censura prévia (o que é proibido por nossa Constituição). Assim como o fato de nossa democracia não ter tido a capacidade de corrigir um STF que não está auto-contido em suas atribuições e age politicamente em conluio com o governo, também não legitima as medidas de Trump.
Trump errou porque aplicou a Lei Magnitsky com um viés político a um juiz de uma democracia (mesmo apenas eleitoral, ou seja, não-liberal, como a do Brasil), não porque Moraes fosse inocente das acusações apresentadas contra ele. Moraes censurou a Revista Crusoé, mesmo antes da descoberta da tentativa de golpe bolsonarista, removeu pessoas de mídias sociais e não apenas seus posts julgados ilegais (o que configura censura prévia), emitindo ordens judiciais secretas que obrigaram plataformas digitais a banir contas, bloqueou o Rumble e, antes, o X, por cerca de 40 dias, na reta final da última campanha eleitoral, bloqueou contas bancárias e sequestrou valores da Space X - Starlink que não tinham a ver societariamente com o X, pediu extradição dos EUA de brasileiros por crime de opinião, além de cometer vários abusos de poder.
Em suma, todos estão errados nessa disputa. Mas não é a primeira vez que isso acontece. A Lei Magnitsky já foi aplicada a indivíduos e entidades de democracias (Paraguai, Guatemala, República Dominicana, África do Sul). É uma minoria dos casos (4 em 40 países, 5 agora se considerarmos Alexandre de Moraes do Brasil).
Mas a Lei Magnitsky jamais foi aplicada contra indivíduos e entidades de democracias liberais ou plenas. Quais são? Austrália, Áustria, Barbados, Bélgica, Canadá, Chéquia, Chile, Costa Rica, Dinamarca, Espanha, Estônia, Finlândia, França, Grécia, Holanda, Irlanda, Islândia, Itália, Jamaica, Japão, Letônia, Luxemburgo, Maurício, Noruega, Nova Zelândia, Portugal, Reino Unido, Seicheles, Suécia, Suíça, Taiwan e Uruguai. Os EUA estão na lista porque ainda são uma democracia liberal (segundo o V-Dem), embora há muito não sejam mais uma democracia plena (segundo a The Economist Intelligence Unit).
Toda vez que a Lei Magnitsky é aplicada, ela viola a soberania de alguma nação, num sentido absoluto do termo. Poderíamos, entretanto, fazer algumas perguntas que questionam esse sentido. Os EUA violaram a soberania da Venezuela ao aplicar a Lei Magnitsky contra seis magistrados do Tribunal Supremo de Justiça (TSJ)? E violaram a soberania da Nicarágua ao aplicá-la ao presidente do Conselho Eleitoral Supremo daquele país? E violaram a soberania de Cuba ao aplicá-la a dirigentes do seu ministério do Interior? E violaram a soberania da Rússia ao aplicá-la à família do Procurador-Geral russo? E violaram a soberania da China ao aplicá-la a oficiais chineses?
Mas a Lei Magnitsky, especialmente na sua versão global (Global Magnitsky Act), foi utilizada pelos Estados Unidos para sancionar indivíduos e entidades de diversos países, como Venezuela, Rússia, China, Arábia Sauditas, Mianmar, Haiti, Paraguai, Guatemala, Zimbábue, Camboja, República Dominicana, Nicarágua, Cuba, Iraque, África do Sul, Sudão, Uzbequistão, Eritreia, Geórgia, Uganda, Gâmbia e Brasil. No total, mais de 740 pessoas e entidades foram sancionadas em 40 países - até 2024. A imensa maioria de ditaduras, portanto.
Dito isso é preciso alertar que democratas não deveriam se enrolar na bandeira brasileira para fazer coro com discursos nacionalistas ofendidos em defesa do STF contra o ataque de Trump à nossa soberania. Devem criticar Trump, mas não engrossando patriotadas que têm um claro objetivo político: contribuir para que Lula recupere sua popularidade e seja mais uma vez reeleito em 2026. E devem refletir, antes de reagir seguindo a boiada: se Trump ataca até o judiciário e outras instituições da própria república americana que não se sujeitam ao MAGA, por que não faria o mesmo contra os poderes do Brasil que, sob o governo Lula, está se alinhando ao eixo autocrático (em especial com inimigos dos EUA, como China e Irã)?
Se o Brasil se aproxima das maiores ditaduras do planeta, por que um democrata deveria se calar sobre isso? Para preservar a honra da pátria atacada por Trump? Os democratas criticam Trump, antes de qualquer coisa, porque ele é um autocrata, um nacional-populista que está destruindo a democracia americana e atacando as democracias liberais mundo afora (o que não é bem o caso do Brasil, que não é uma ditadura, mas também não é uma democracia liberal ou plena - como já foi dito).
E embora o Brasil possa ser considerado um Estado democrático de direito, com independência formal do judiciário em relação aos demais poderes, nosso STF - nunca é demais repetir - não está auto-contido em suas atribuições e age politicamente em aliança com o governo. Não podemos esquecer tudo isso em nome de um suposto valor supremo da soberania. A soberania nacional é importante, mas não é um valor acima da democracia como valor universal.
Se a soberania fosse um valor acima da democracia, os países democráticos jamais poderiam aplicar sanções a indivíduos e entidades de diversos países por violações graves de direitos humanos ou corrupção significativa. Ou usar outros mecanismos para além da Lei Magnitsky (que só os EUA podem aplicar) para tentar coibir governantes que violam o direito internacional; por exemplo, invadindo militarmente outros países. Putin não poderia ser sancionado pela invasão da Ucrânia porque isso feriria a soberania da Rússia - o que é um completo absurdo.
Vejo as medidas de Trump como um mal necessário. Alguém ou alguma força precisava conter Alexandre de Moraes. O sujeito se autoproclamou imperador do país e defensor da democracia Torço pelo impeachment dele. Seria salutar para a democracia brasileira, se é que ela ainda existe.
O sancionado, apesar de ser juiz da Suprema Corte de uma ainda democracia, age como um ditador, simples assim.