Diogo Dutra, Inteligência Democrática (23/06/2024)
A razoabilidade, conforme concebida por John Rawls, é essencial para a manutenção e fortalecimento da democracia. Em seu livro "O Liberalismo Político" Rawls enfatiza a necessidade de uma abertura para composições com o diferente, uma característica que está em falta na atual conjuntura política brasileira. A polarização, alimentada por identidades de grupo e verdades absolutas, tem promovido uma competição acirrada, em vez de colaboração, em todos os espectros públicos. Vivemos uma era de populismos que simulam razoabilidade através de alianças de submissão, visando mais o poder hegemônico do que a construção de uma sociedade justa e equitativa.
Uma análise mais atual de Rawls pode sugerir que apenas através da razoabilidade podemos frear esses movimentos populistas atuais. A razoabilidade não busca criar novos símbolos para rivalizar com os "mitos" estabelecidos, mas sim promover alianças de colaboração genuínas. O desafio é conformar forças razoáveis que possam contrabalançar os multi-polos da política, sem a necessidade de instaurar um novo líder hegemônico. A questão que se coloca é se partidos e políticos que competem por uma "primeira via" conseguiriam fazer isso. Poderiam eles estabelecer e manter um pacto de governo colaborativo, mesmo sob a pressão de suas bases eleitorais que normalmente estão enraizadas em bases não-razoáveis?
Penso que precisamos resgatar mais Rawls para nos lembrar de bases que sustentam a democracia, inclusive sob a perspectiva do direito. As noções articuladas por ele tanto em "Uma teoria da Justiça" como em "O liberalismo político" nos ajudam a responder, sob a perspectiva da democracia, os mais recentes paradoxos levantados por múltiplos movimentos claramente insatisfeitos com a democracia, e que nos empurram para abismos totalitários sobre a justificativa de fazer o bem, resgatar os oprimidos ou dar voz aos que não estão sendo ouvidos.
Rawls argumenta que a concepção de justiça deve ser política, e não filosófica ou religiosa. Essa visão exige a abdicação do conceito de verdade em favor da razoabilidade, que depende de um processo interativo entre as pessoas. Esse princípio político sustenta um processo contínuo e construtivo de resolução de conflitos e dificuldades diárias. A razoabilidade, aliada aos princípios cooperativos, forma a base do liberalismo político e da democracia.
"Finalmente, como vimos, o razoável (com sua ideia de reciprocidade) não é o mesmo que o altruístico (que se aplica à conduta imparcial exclusivamente em benefício de outros), nem é o mesmo que uma preocupação exclusiva com o eu (e ser motivado somente pelos fins e afetos do eu). Em uma sociedade razoável, que de forma muito simplificada pode ser compreendida como uma sociedade de iguais em questões fundamentais, todos têm os próprios fins racionais, que esperam realizar, e todos estão dispostos a propor termos equitativos que possam razoavelmente esperar que outros aceitem, de modo que todos possam se beneficiar a ganhar em relação àquilo que cada um poderia fazer por conta própria." [Extraído do livro “O Liberalismo Político” de John Rawls]
No contexto brasileiro, a falta de razoabilidade se manifesta na polarização baseada em "verdades" de cada grupo, o que cria um ambiente de superioridade moral a partir de verdadeiras "religiões laicas" (ou seja, as ideologias velhas e novas que surgem). Essas ideologias, que se apresentam como verdades absolutas, são um risco para o liberalismo político, ou seja, para a democracia. Em uma sociedade razoável, todos têm seus próprios fins racionais, mas estão dispostos a propor termos equitativos que possam ser aceitos por todos, beneficiando a sociedade como um todo. Este não é um mundo de santos, nem de pessoas egoístas, mas um reflexo de nosso mundo humano ordinário, onde a cooperação é possível e desejável.
Por fim, é importante citar também que Rawls aborda, na esteira do paradoxo da intolerância de Popper, a questão da tolerância ao intolerante, afirmando que a liberdade dos intolerantes deve ser limitada apenas quando a segurança das instituições de liberdade está em perigo. O princípio fundamental é estabelecer uma constituição justa com liberdades cidadãs iguais. A justiça deve guiar-se por seus próprios princípios, e não pela maximização da liberdade de alguns em detrimento de outros. Em tempos de polarização, a adoção da razoabilidade rawlsiana pode ser a chave para superar os conflitos e construir uma sociedade democrática mais justa e colaborativa.
A sociedade brasileira enfrenta o desafio de resgatar a razoabilidade como um princípio norteador em sua vida política. Somente assim poderemos avançar para uma democracia que respeite a diversidade e promova a cooperação entre seus cidadãos. É hora de abandonar as "verdades" absolutas e abraçar a razoabilidade como caminho para uma sociedade mais justa e equitativa.
John Rawls foi um dos mais influentes filósofos políticos do século XX. Nascido em 1921, Rawls é mais conhecido por suas obras "Uma Teoria da Justiça" (1971) e "O Liberalismo Político" (1993). Em "Uma Teoria da Justiça," ele introduz a ideia de justiça como equidade (fairness), baseada em dois princípios fundamentais: o princípio da liberdade e o princípio da diferença. Já em "O Liberalismo Político" Rawls expande suas ideias para lidar com a diversidade de doutrinas morais e filosóficas em sociedades democráticas, propondo a razoabilidade como um fundamento para a cooperação política. Sua obra tem uma conexão profunda com a democracia, pois busca garantir que as instituições políticas sejam justas e que todos os cidadãos possam viver em igualdade e liberdade, respeitando a diversidade de crenças e valores.