A reforma política que ainda pode acontecer
Rafael Ferreira, Inteligência Democrática (03/07/2024)
Sou de uma geração que acreditou que iria acontecer uma reforma política digna desse nome no país. Na época, lá pelos idos dos anos 80, no fluxo da reabertura e das Diretas Já, havia um partido que se identificava com os não representados, então sem direito a voto.
Era estudante universitário e acompanhava atentamente os debates sobre os rumos da nossa democracia. Dentre eles o tema da representação política.
Já com as eleições diretas regulamentadas e podendo votar nos candidatos que apareciam, inclusive naqueles do novo partido que surgia, percebia-se um padrão de eleitos que remontava a tempos oligárquicos. Essa permanência incômoda se encaixava no que chamávamos de entulho autoritário, resquício de um passado que se recusava a abandonar o jogo político.
Veio a nova Constituição, o plebiscito sobre o regime de governo e pouca coisa mudou desde então. Estados menores continuam super-representados e maiores sub-representados. Além disso, a farra de partidos que sugam dinheiro público em nome de uma representação de ocasião, até que a próxima eleição mude tudo de novo.
O tal novo partido assumiu o poder e pouco contribuiu com qualquer investimento no assunto. Prevaleceu o casuísmo. O interesse pessoal do representante continuou a se sobrepor ao do representado.
Na barafunda de siglas hoje em dia, o caos permite que pessoas comuns se aventurem em candidaturas, ainda que nem sempre vejam a cor do dinheiro do financiamento estatal, que costuma ficar retido nas mãos dos donos das siglas e seus aliados mais próximos. O partido, no entanto, é o intermediário da representação, mesmo que não represente nada a não ser seus chefes políticos.
Para o neófito que ainda pretende se candidatar, alcançar o objetivo de se eleger passa por tratar bem o chefe da agremiação local que escolheu, aquele que provavelmente vai recolher algum naco do famigerado fundo eleitoral ou vantagem na repartição de cargos. A oligarquia partidária se reproduz como réplica dos esquemas de Brasília.
Mas do que reclamar se ainda água nova entra no poço quase fétido? A entrada de novos atores, novas ideias, não vai oxigenar o sistema? Será o caso de deixar para as próximas gerações pensar em mudanças inovadoras no sistema eleitoral?
Reformas democratizantes dependem de uma opinião pública vigorosa, e essa não pode depender de uma imprensa vocacionada para as notícias da corte. Ela precisa vir de baixo para cima, das pessoas que interagem na comunidade política.
A comunidade política somos nós na localidade em que vivemos e são os nós que estabelecemos com as pessoas do nosso entorno.
Não seria o caso, portanto, de parar de esperar por mudanças dentro de um sistema altamente centralizado e experimentar novas formas de escolha na comunidade em que vivemos, até mesmo para que esse futuro com inovação legislativa seja possível? Ou é melhor aceitar um destino inevitável que nos legou um caminho para a permanência do populismo que tudo suga e não deixa espaço para a auto-organização?
Um futuro que se desvincule de um passado que teima em querer se impor só é possível com a auto-organização das pessoas. É preciso, para isso, o primeiro passo que rompa a inércia do conformismo.
A reforma política que não aconteceu ainda pode acontecer.
Por exemplo, por que - como sugere a iniciativa Casas da Democracia - não experimentamos introduzir mudanças democráticas na gestão de organizações (do Estado, da sociedade ou do mercado) das localidades onde atuamos, substituindo a lógica da escassez pela lógica da abundância? Por que não substituímos votações por sorteio, sempre que possível, nos procedimentos internos de organizações da localidade?
Temos que ir para a praça.