A sensação de estar sendo enganado
Não está escrito nas estrelas que um golpe é sempre bem-sucedido
Uma das coisas mais revoltantes do mundo é a sensação de estar sendo enganado. Criaram e estão repetindo uma narrativa falsa sobre o que aconteceu no Brasil nos últimos anos. Segundo tal narrativa a única ameaça à democracia vem por meio de golpes de Estado à moda antiga, com intervenção militar. Mais de 90% dos jornalistas e analistas políticos não sabem (ou fingem não saber) que autoritarismo não é só querer e tentar dar esse tipo de golpe de Estado (à moda antiga, como ocorreu em Myanmar (foto) e em alguns países africanos): quase 70% dos processos de autocratização neste século não apelaram para o golpe militar.
Pois bem. Houve de fato no Brasil tentativa de golpe de Estado (à moda antiga) por parte de Bolsonaro e de alguns militares e civis da sua turma. Houve intenção, preparação e, tendo ou não havido início de execução, o fato é que o golpe não se consumou. Se tivesse se consumado, entretanto, nada indica que teria sido bem-sucedido. Tivemos, desde a proclamação da República, oito golpes, tentativas de golpe ou pronunciamentos militares (a iniciativa bolsonarista inclusa) que fracassaram (como explicado mais adiante neste artigo). Portanto, não está escrito nas estrelas que um golpe militar é sempre bem-sucedido.
Aí vem a segunda enganação: a de que se o golpe de Bolsonaro tivesse se consumado nós nem estaríamos aqui para analisá-lo e reclamar. Por que isso é uma enganação? Porque, uma vez consumado, igualmente, nada indica que teria durado a ponto de alterar a natureza do nosso regime político, trocando a democracia por uma ditadura.
Vejamos. Para começar, um golpe desse tipo antigo não teria contado com o apoio dos Estados Unidos (sob Biden) e do conjunto de regimes democráticos mundo afora. Haveria, provavelmente, sanções internacionais contra o país, afetando seriamente nossa economia, segurança e inserção geopolítica.
Nada indica que as forças armadas, no seu conjunto, se colocariam (ou permaneceriam) favoráveis ao golpe por muito tempo. Diante de inevitáveis restrições de segurança, inclusive de uso e reposição de armamentos e munições (compatíveis com os padrões da OTAN), Exército, Marinha e Aeronáutica seriam afetados. Alianças militares já consolidadas e exercícios conjuntos com forças armadas de outros países democráticos poderiam ser suspensos.
A maioria do parlamento brasileiro também não apoiaria um golpe que abolisse o regime democrático e cassasse ou restringisse a atuação de deputados e senadores (sobretudo do chamado "centrão", que precisa da democracia para continuar tocando seus negócios políticos).
Isso para não falar de muitos setores sociais e empresariais: o Brasil é um país enorme, com uma sociedade complexa que, ao que tudo indica, não está disposta à voltar a um regime ditatorial à moda antiga, semelhante ao instalado pelo golpe militar de 1964. O Brasil não é Myanmar. Nem Burkina Faso, Mali, Chade ou Guiné.
A enganação se consuma com a comparação com golpes militares, tentativas de golpe e pronunciamento militares anteriores, ocorridos ao longo de nossa história, como se os tempos fossem os mesmos e o país fosse o mesmo e o mundo fosse o mesmo. A metade dessas quebras constitucionais fracassou (mais ou menos o mesmo número das que prevaleceram). Fracassaram a deposição de Rodrigues Alves em 1904, de Epitácio Pessoa em 1922, de Artur Bernardes em 1924, de Juscelino Kubistchek em 1956 e em 1959, de João Goulart em 1961 e de Bolsonaro em 2022. Prevaleceram as deposições de Pedro II em 1889 e de Washington Luís em 1930, o autogolpe do Estado Novo em 1937, o golpe do fim do Estado Novo em 1945 e as deposições de Getúlio Vargas em 1954 e de Carlos Luz e Café Filho em 1955 e, por último, a de João Goulart em 1964 - que foi a última quartelada bem-sucedida da nossa história. Isso foi há mais de 60 anos.
Então agora vem o argumento caviloso de que o fracasso da tentativa de golpe bolsonarista e a punição exemplar dos militares envolvidos vai resolver o problema de eliminar a pulsão golpista que se manifesta nas forças armadas brasileiras.
A condenação, pela primeira vez na nossa história republicana, de alguns (pouquíssimos) altos oficiais das forças armadas é importante, mas não resolve o problema. A cultura autocrática das forças armadas é antiga e está enraizada em todos os escalões do comando e, inclusive, nas famílias militares. Essa cultura também não é exclusivamente brasileira. Em democracias os militares devem estar subordinados ao poder civil e seu papel político é nenhum. Mas mesmo sendo enquadrados por esses constrangimentos democráticos, os militares continuam pensando com a própria cabeça e, quando obedecem, não necessariamente concordam com o comandante em chefe das forças armadas e seu governo.
E isso ocorre na maioria dos países do mundo, por dois motivos. Primeiro porque não se pode esperar que um organismo hierárquico, estruturado para a guerra, seja democrático naturalmente ou por opção (a guerra, para quem não sabe, é a autocracia). Pode-se esperar, numa democracia, que os militares respeitem as leis, mas Estado de direito não é a mesma coisa que democracia.
O segundo motivo é mais simples de entender. Como a maioria dos países do mundo não é democrática (no sentido liberal ou pleno do termo), obedecer as leis ilegítimas das ditaduras pode acabar levando ao oposto da democracia. E por isso as forças armadas da maioria dos países do mundo não são democráticas. No mínimo porque a maioria dos países do mundo não é democrática (como veremos a seguir).
OK, um democrata deveria desejar que os militares fossem democratas. Mas em que lugar do mundo a cultura militar é realmente democrática? Bem... se é assim, os militares, pelo menos, devem obedecer as leis. Mas, novamente: eles devem obedecer as leis democraticamente aprovadas ou obedecer a quaisquer leis? Os militares de dezenas de autocracias islâmicas devem obedecer à sharia? Se obedecerem, isso é compatível com a democracia?
Então vamos resolver assim. Os militares devem obedecer ao Estado de direito. Mas o que é exatamente Estado de direito quando as leis não são legitimamente aprovadas? No mundo atual (segundo o V-Dem 2025, com dados de 2024) temos 35 autocracias fechadas e 56 autocracias eleitorais, mas somente 29 democracias liberais. Além disso, temos 59 regimes eleitorais (não-autocráticos, mas também não-liberais), ainda chamados de democracias, mas quase a metade dos quais parasitados por governos populistas. Ou seja, a maioria dos países do mundo não é democrática e, a rigor, não tem um Estado de direito - embora tenha leis, essas leis não foram democraticamente aprovadas.
No caso do Brasil, não temos uma democracia liberal ou plena, mas um regime eleitoral defeituoso parasitado por um governo populista de esquerda a que os militares devem obedecer, mas não teriam motivos para concordar… mesmo se fossem democratas!
De qualquer modo, no nosso caso, a única solução é de médio e longo prazos e passa pelo constante diálogo e negociação com as forças armadas para mudar os critérios de promoção de oficiais e os currículos da formação militar, reciclar ou substituir seus instrutores e desintrojetar, da cabeça da oficialidade intermediária, os fundamentos da doutrina de segurança nacional e o conceito antidemocrático de 'inimigo interno'. Condenações justas ou injustas e penas brandas ou draconianas não vão levar os militares, apenas por medo da punição, a mudar sua cultura.
Repetindo para que fique claro. Os militares devem estar subordinados ao poder civil e seu papel político é nenhum. Ponto. E vírgula. Isso só é desejável em democracias. Quem é democrata e não coloca o valor nacional da soberania acima do valor universal da democracia não pode desejar que os militares russos estejam subordinado a Putin e que os militares venezuelanos estejam subordinados a Maduro. Ou pode?