A terceira onda de autocratização e a segunda grande guerra fria
Estamos imersos numa terceira onda de autocratização (veja a imagem que ilustra este post e leia um artigo mais completo sobre isso).
Alguns avaliam que essa onda começou em meados dos anos 90. Porém mais certamente ela começou no dealbar do século 21. O marco menos inequívoco seria o início da recessão democrática (por volta de 2006), quando o número líquido de democracias, como diagnosticou Larry Diamond (2015), parou de crescer no mundo. Muitos hesitam em nomeá-la como a onda da segunda grande guerra fria, mas há fortes indicativos de que tal caracterização possa ser aplicada. Poderia também ser chamada de onda de ascensão dos novos populismos do século 21 (o neopopulismo, dito de esquerda, e o nacional-populismo, dito de extrema-direita, como principais adversários da democracia liberal).
De qualquer modo, são eventos associados à terceira onda de autocratização:
➡️ A subida ao poder na Rússia de Vladimir Putin em 1999-2000.
➡️ A ascensão do jihadismo ofensivo islâmico, o atentado terrorista ao WTC (2001), a guerra contra o terror e o unilateralismo em política externa por parte dos EUA (sob o segundo governo Bush).
➡️ O surgimento do populismo de esquerda na América Latina levando a autocracias eleitorais (Venezuela, Nicarágua) e à regimes eleitorais parasitados por forças políticas não-liberais (Bolívia, Equador, El Salvador, Honduras, México, Brasil, Colômbia).
➡️ A ascensão do populismo-autoritário de extrema-direita (Cinco Estrelas e Lega de Salvini, Meloni, Le Pen, Farage e a turma do Brexit, Trump, Wilders, Bolsonaro, Ventura, Abascal e a consolidação de autocracias eleitorais de extrema-direita na Hungria, Turquia, El Salvador e Índia ou Bharat).
➡️ O início da formação de um novo eixo autocrático (juntando autocracias fechadas e eleitorais como Cuba, China, Rússia, Coreia do Norte, Irã, Síria, Venezuela, Nicarágua, Hungria, Turquia, Índia) além de regimes eleitorais parasitados por populismos de esquerda e de extrema-direita, com tendência a instaurar uma segunda grande guerra fria.
➡️ A invasão da Ucrânia pela ditadura russa (em 2014 e, mais amplamente, em 2022) e a formação de uma coalizão das democracias liberais para conter o avanço do novo eixo autocrático.
➡️ A guerra do Irã contra Israel, por meio de seus braços terroristas comandadas pela IRGC - Guarda Revolucionária Iraniana (Hezbollah, Hamas, Houthis, milícias jihadistas no Iraque, na Síria e em todos as quatorze ditaduras do Oriente Médio).
➡️ O surgimento de uma articulação política, disfarçada de bloco econômico, chamada BRICS, comandada pelo eixo autocrático (notadamente Rússia e China), congregando as maiores ditaduras do planeta e regimes eleitorais não-liberais, parasitados por populismos, contra as democracias liberais.
Mas é impossível entender a conjuntura atual e o período histórico em que estamos entrando se não levarmos em consideração de que há uma segunda guerra fria em curso, opondo um eixo autocrático às democracias liberais.
O eixo autocrático é liderado pelas maiores ditaduras do planeta (como Rússia, China e Irã) e pretende articular outras mais de 80 autocracias e capturar cerca de 20 regimes eleitorais - não-autoritários, porém também não-liberais (como México, Honduras, Colômbia, Brasil, África do Sul) - contra as 32 democracias liberais e as pouco menos de 40 democracias eleitorais formais que existem hoje no mundo.
As guerras da Rússia contra a Ucrânia e do Irã contra Israel são eventos regionais quentes dessa segunda grande guerra fria mundial. Mas a forma predominante da segunda guerra fria é a de uma netwar que pervade todos os países, instalando uma polarização tóxica na sua vida política e social e dividindo as sociedades nacionais. Não é mais uma guerra de blocos geograficamente demarcáveis. Não é que a China vai ocupar agora o lugar da URSS na sua luta contra os EUA. É outro tipo de conflito, muito mais perigoso para a democracia e para a humanidade do que foi o primeiro.
A segunda guerra fria insere-se, pois, dentro da terceira onda de autocratização que nos assola desde o início do século 21.
Mas a terceira onda de autocratização não é apenas uma explicação conceitual, uma análise abstrata sobre a nova configuração das forças políticas em disputa na atualidade. É uma regressão importante, uma escuridão que desce sobre todas as áreas da atividade social. Para os fãs de Star Trek, é como se um planeta alegre e vibrante numa galáxia distante fosse de repente dominado por autocratas romulanos.