Luciano Huck, O Globo (15/05/2024)
O psicólogo Adam Grant, uma das vozes contemporâneas mais influentes, aponta a importância de nos mantermos mentalmente flexíveis para lidar com uma realidade cada vez mais complexa. Para ele, o melhor jeito de enfrentar catástrofes climáticas, pandemias, recessões e ataques à democracia é abandonar o quentinho das nossas convicções e a racionalidade binária. Ter coragem para escolher o desconforto. É o mesmo conselho que Toni Morrison, primeira negra a ganhar o Nobel de Literatura, costumava dar aos amigos: olhem menos para o espelho, mais para a janela.
Há anos procuro atuar dessa forma na TV e na minha vida. Peço licença às pessoas, presto atenção, aprendo um bocado e partilho com quem puder. Não me importa que chamem de “isentão” quem não se abraça a nenhum dos polos. Importa, para mim, lembrar que, ao se fechar numa caixinha, “de direita” ou “de esquerda”, a pessoa corre risco de se fechar também para boas ideias que venham da outra. Claro, não é problema se identificar com um lado. Só defendo que na vida, como no futebol, dá para chutar com os dois pés.
Não adianta ser um político que grita aos quatro cantos ser representante da ordem e de Deus, mas não respeita a vida, as pessoas nem a própria democracia. Não adianta ser um político que diz olhar pelos mais pobres, mas não se atualiza sobre questões globais nem olha para novas tecnologias, perpetuando uma visão retrógrada do Estado.
Poderia escrever parágrafos sobre Fernando Henrique Cardoso. Talvez o maior líder ambidestro da nossa jovem democracia, ele ampliou garantias dos direitos individuais, universalizou o ensino básico, derrotou a inflação, lançou programas de renda, privatizou serviços públicos ineficientes e abriu o Brasil para o mundo. Um capitalista social, um liberal progressista, um social-democrata, tanto faz a definição. Tenho perfeita consciência, no entanto, de que basta citar FH para parte da sociedade interditar o debate e pegar em armas. (Minha intuição, e torcida, é que o tempo fará justiça.) Por isso, especialmente para as tropas dos dois polos, quero trazer à luz assuntos do noticiário e apontar como o debate ganharia com uma abordagem substantiva e desafiadora ao pensamento polarizado.
Você sabia que a conta de luz do brasileiro talvez seja a mais injusta do mundo, que o pobre paga pelo watt três vezes mais que as empresas? Quem cobra mudanças ouve que é vital preservar a “segurança jurídica” dos contratos. Enquanto isso, a população fica à mercê de serviços precários, mesmo nos centros urbanos. Foi um alento, na virada do ano, quando Lula e governadores discursaram contra as assimetrias. Mas o que se vê desde então? Discussão de mais subsídios e penduricalhos na conta, tudo o que interessa aos lobbies do statu quo. Não é o caso de promover nova abertura, sem, claro, comprometer a segurança do sistema? Um avanço na privatização, para dar aos mais pobres a liberdade de escolha que hoje só os mais ricos desfrutam? Economias modernas, inclusive social-democratas, pegaram essa trilha. Aqui no Brasil há exemplos que deram certo, caso do setor da telefonia.
Outro tema que merece enfrentamento ambidestro é o desemprego. Faz todo o sentido investir dinheiro público desonerando o empregador que der carteira assinada para quem hoje não tem oportunidades. Poderíamos priorizar jovens de 18 a 25 anos que cursaram o ensino público. E/ou mulheres com filhos, notadamente mães solo, as mais alijadas do mercado. Já há projetos de lei madurinhos para fazer isso virar realidade. Basta alguém do círculo palaciano sair da caixinha e jogar com as duas pernas.
Do mesmo modo, em vez de bombardear a ideia do governo paulista de adotar soluções de inteligência artificial nas salas de aula — algo inevitável, já adotado nas melhores escolas particulares —, por que não discutir como isso liberaria tempo e energia para aspectos hoje negligenciados na rede pública? Sabemos da importância para as crianças do desenvolvimento de competências socioemocionais. A grade curricular precisa capacitar nossos jovens para lidar com um futuro cada vez mais disruptivo, e os professores precisam ter condições de se dedicar a isso.
Para não ficar apenas em senões, vale mencionar a reforma tributária. Se protegido dos grupos de pressão e não desfigurado na regulação, o pacote de mudanças nos impostos comprovará como é preciosa a busca de consensos que transcendam a governos e tribos partidárias. Que nesse caso se deve à iniciativa, à determinação e ao espírito cívico do economista Bernard Appy, um… ambidestro!
Quero um país mais rico, mais aberto, mais moderno e mais produtivo. Quero também um país mais justo, solidário, inclusivo e afetivo. Em caixinhas garanto que não vou me trancar. Até porque uma das minhas poucas certezas é que nós, que não nos deixamos encaixotar, somos muitos.