As comunidades democráticas do futuro estão voltando
Casas da Democracia para Revista Inteligência Democrática (19/09/2025)
Esta publicação não tem fins comerciais. É um subsídio para a conversação sobre democracia em qualquer lugar, organização ou grupo de pessoas. É um texto inacabado que precisa ser decifrado e deve ser recriado a partir da interação.
São Paulo, Casas da Democracia (11/07/2025)
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Introdução
Para começar é bom deixar claro o que se entende aqui por democracia. Quando falamos de democracia, em geral, falamos da democracia como modo político de administração do Estado, ou regime político. Há um razoável consenso (entre os democratas liberais) sobre quais são os critérios que se aplicam à democracia como regime político ou modo político de administração do Estado, no caso atual, do Estado-nação moderno.
Pode-se listar dez critérios para caracterizar um regime democrático em sua plenitude (liberal):
1 - Liberdade de associação, liberdade de expressão e liberdade de imprensa (existência de fontes alternativas de informação).
2 - Proteção dos direitos individuais e das minorias contra a tirania do Estado e a tirania da maioria (recusa ao majoritarismo e ao hegemonismo).
3 - Eleições limpas e periódicas, sufrágio universal, governos e parlamentos eleitos.
4 - Rotatividade ou alternância no governo (não apenas de pessoas, mas também de partidos ou forças políticas).
5 - Cultura política pluralista, oposições políticas democráticas reconhecidas e valorizadas como players legítimos e fundamentais para o bom funcionamento do regime.
6 - Publicidade ou transparência nos atos do governo (capaz de ensejar uma efetiva accountability).
7 - Instituições estáveis, equilíbrio entre os poderes e sistemas atuantes e efetivos de freios e contrapesos.
8 - Império da lei e judiciário independente (e autocontido em suas atribuições).
9 - Forças armadas subordinadas ao poder civil.
10 – A sociedade controla o governo e não o contrário (a qualidade da democracia é medida pelos limites e condicionamentos impostos pela sociedade às instituições do Estado - o que pressupõe recusa ao estatismo).
Entretanto, os critérios acima não se aplicam diretamente à democracia em não-países, experimentada como modo de vida em comunidades políticas democráticas. Não pode haver um conjunto de critérios, equivalentes ou semelhantes aos da lista acima, para caracterizar a democracia como modo de vida ensaiada por uma comunidade política. Sobretudo se critérios desse tipo tenderem a virar regras, ou seja, leis. O império da lei pode caracterizar um regime político democrático sob um Estado de direito, mas não em um não-Estado, uma comunidade política que se forme, por exemplo, numa família, num grupo de amigos, numa vizinhança, num setor de atividade, numa escola, numa igreja, numa organização da sociedade civil, numa empresa. Este texto é sobre isso.
A democracia como regime político em crise
É altamente improvável que os números atuais de democracias liberais (29 países, segundo o V-Dem) (1) ou de democracias plenas (25 países, segundo a The Economist Intelligence Unit - EIU) (2) aumentem significativamente no curto e médio prazos. São consideradas hoje (2025) democracias liberais ou plenas (ou ambas) menos de 35 países: Alemanha, Austrália, Áustria, Barbados, Bélgica, Canadá, Chéquia, Chile, Costa Rica, Dinamarca, Espanha, Estónia, EUA, Finlândia, França, Grécia, Holanda, Irlanda, Islândia, Itália, Jamaica, Japão, Letônia, Luxemburgo, Maurício, Noruega, Nova Zelândia, Portugal, Reino Unido, Seicheles, Suécia, Suíça, Taiwan e Uruguai (3).
Algumas evidências, que corroboram essa previsão, seguem abaixo. Essas evidências foram colhidas aleatoriamente e não se pode afirmar que o estado atual da democracia no mundo que elas retratam vá se manter no futuro, ainda que possivelmente algumas delas ocorram no contexto de uma onda de autocratização na qual estamos imersos no presente século.
· A democracia não funciona bem em países que têm sistemas de governo presidencialistas plenos. Temos hoje no mundo 65 países nessa condição. Desses 65 países, a maioria é de autocracias.
· Dos 51 países atualmente em guerra (considerando conflitos armados com mais de mil mortes anuais ou crises humanitárias graves), mais de 80% são autocracias.
· Entre os 16 países muito grandes (com mais de 100 milhões de habitantes), cerca de 70% são autocracias (só há uma democracia plena, o Japão e duas democracias liberais, o Japão e os EUA - pelo menos por enquanto). Nada indica que essa porcentagem vá se modificar significativamente no curto e médio prazos.
· Dos 48 países com populações majoritariamente muçulmanas, mais de 80% são autocracias. Nada indica que essa porcentagem vá se modificar significativamente nos curto e médio prazos.
· Numa lista de cerca de duas dezenas de países com regimes eleitorais parasitados por governos populistas (ditos de esquerda ou de direita), não se encontra nenhuma democracia plena (EIU) (4).
Na passagem da segunda para a terceira década do presente século formou-se (ou tornou-se mais visível) um eixo autocrático em guerra de exterminação contra as democracias liberais ou plenas. Convenhamos que não é provável que a maioria dos países desse eixo autocrático venha a se democratizar no curto ou médio prazos.
Esse eixo autocrático é o maior e o mais poderoso já surgido na história, juntando, ativamente ou potencialmente, Rússia, Bielorrússia, Coreia do Norte, China, Irã e seus braços terroristas, além de quase duas dezenas de autocracias islâmicas, Laos, Vietnam e outras ditaduras asiáticas (Cazaquistão, Uzbequistão etc.), Angola e outras ditaduras africanas (Congo DR, Nigéria, Uganda etc.), Hungria e Turquia, El Salvador, Cuba, Venezuela e Nicarágua.
A parte ativa desse eixo autocrático está avançando em articulações políticas disfarçadas de blocos econômicos, como o BRICS – composto por 80% de ditaduras, sob o nome fantasia de Sul Global (uma espécie de terceiro-mundismo requentado).
O fato é que há uma terceira onda de autocratização em curso no mundo, que ficou mais visível a partir do início do século 21. A partir de 2005 registrou-se uma recessão democrática (o número líquido de democracias parou de crescer) (5). Na era moderna, a primeira onda de autocratização, de 1922 a 1944, foi marcada pela ascensão dos totalitarismos (nazifascismo e stalinismo); a segunda onda, de 1962 a 1988, pela primeira grande guerra fria; e a terceira onda, a partir dos anos 2000, pela ascensão dos novos populismos como principais adversários da democracia liberal e pela eclosão de uma nova guerra fria (6).
Foram eventos marcantes (em alguns casos fundantes) da terceira onda de autocratização: a subida ao poder na Rússia de Vladimir Putin em 1999-2000; a ascensão do jihadismo ofensivo islâmico, o atentado terrorista ao WTC (2001), a guerra contra o terror e o unilateralismo em política externa por parte dos EUA (sob o segundo governo Bush); o surgimento do populismo de esquerda na América Latina levando a autocracias eleitorais (Venezuela, Nicarágua) e a regimes eleitorais parasitados por forças políticas não-liberais (Bolívia, Equador, El Salvador, Paraguai, Honduras, Argentina, Peru, México, Brasil); a ascensão do populismo-autoritário de extrema-direita (Cinco Estrelas e Lega de Salvini, Le Pen, Brexit, Trump, Bolsonaro e consolidação de autocracias eleitorais de extrema-direita na Hungria, Turquia e Índia); o início da formação de um novo eixo autocrático (juntando autocracias fechadas e eleitorais como Cuba, China, Rússia, Bielorrússia, Coreia do Norte, Irã etc.) além de regimes eleitorais parasitados por populismos de esquerda e de extrema-direita, instaurando uma segunda grande guerra fria.
Essa nova guerra fria se instalou mais plenamente a partir da passagem da segunda para a terceira década do século 21. Ela é a nova forma de guerra da atualidade: uma netwar (ou guerra em rede, uma guerra que atinge quase todas as sociedades nacionais, introduzindo polarização e divisão - o que vai muito além de uma ciberguerra ou de uma guerra pela internet ou pelas mídias sociais e programas de mensagens) (7).
O mundo está em guerra
A guerra mundial atual é uma guerra fria. Guerra fria é guerra. Estamos numa segunda guerra fria movida pelo eixo autocrático contra as democracias liberais – e não apenas uma guerra EUA x China, como se fosse um repeteco da primeira guerra fria EUA (e Ocidente) x URSS.
A guerra atual, como já foi dito, é uma netwar: uma ‘guerra social’ (ou antissocial), que atravessa todas as fronteiras e divide as sociedades nacionais.
Mas a netwar já é a terceira guerra mundial – que também não é uma repetição do que foram a primeira e a segunda guerras quentes mundiais.
Teremos ainda muitos episódios de guerras quentes regionais, mas o evento mais importante é a guerra global que já se instalou. É por isso, por exemplo, que a guerra de Gaza não é em Gaza, mas no mundo todo. Em Gaza, Israel vai vencendo. No mundo, o Hamas já venceu.
As guerras quentes regionais cumprem um papel alimentador e detonador da netwar global. Assim ocorre com a guerra do Irã (integrante do eixo autocrático) contra Israel (que era uma democracia liberal), seja via uma dúzia de grupos terroristas (Hamas, Jihad Islâmica, Hezbollah, Houthis etc.), seja, depois, diretamente. Em todas as sociedades ditaduras e democracias parasitadas por governos populistas se levantam contra Israel (e, mais do que isso, espalham o antissemitismo). E isso não tem a ver, nem somente, nem principalmente, com a orientação autoritária (nacional-populista) do atual governo de Israel, mas com o fato de Israel ser a única democracia cercada por quatorze autocracias do Oriente Médio.
Assim ocorre com a guerra da Rússia (integrante do eixo autocrático e na vanguarda da netwar) contra a Ucrânia, na verdade, contra as democracias europeias, ameaçando imediatamente a Moldávia, a Estônia, a Letônia, a Lituânia, a Finlândia, a Geórgia e até a Suécia e a Polônia. Novamente, se colocam a favor da Rússia as ditaduras e setores das democracias parasitadas por governos populistas.
Assim também ocorrerá, em breve, na guerra da China (integrante do eixo autocrático) contra Taiwan (uma democracia liberal).
A polarização e a consequente divisão que a netwar instala nas sociedades de todos os países é parte da netwar global que, para todos os efeitos práticos, é uma campanha de exterminação das cerca de três dezenas de democracias liberais que ainda restam no mundo. Além disso, uma vez entrando em guerra quente regional, atacadas por algum integrante do eixo autocrático, as democracias liberais decaem. Segundo o V-Dem, depois do ataque terrorista e do início da guerra contra o Hamas, Israel deixou de ser uma democracia liberal e passou a ser uma democracia apenas eleitoral (um regime não-liberal). A Ucrânia deixou de ser uma democracia eleitoral e passou a ser uma autocracia eleitoral. O mesmo ocorrerá com Taiwan, quando a China começar a invadi-la.
Países com regimes democráticos não entram em guerra entre si. Mas uma vez atacados por países com regimes autocráticos, os países com regimes democráticos decaem: ou deixam de ser liberais ou, pior, passam a ser autocracias. Tudo isso acontece porque não é que países autocráticos façam guerra (entre si e contra países democráticos) e sim porque a guerra é a autocracia.
A guerra é o modo de ser da autocracia. Em outras palavras: o que chamamos de autocracia é um modo guerreiro de regulação de conflitos. Em geral há dificuldade de entender isso porque as pessoas acham que guerra é apenas guerra quente (com derramamento de sangue) e não veem que guerra fria também é guerra e que a política praticada como continuação da guerra por outros meios (na base do “nós contra eles”, como fazem todos os populismos, ditos de direita ou de esquerda) também é guerra. Não veem que guerra não é destruição violenta de inimigos e sim construção de inimigos, o que pode acontecer, inclusive, de forma não violenta.
As pessoas também têm dificuldade de ver que – com exceção de quando um país é invadido – toda guerra é, por assim dizer, interna. Que o objetivo da guerra é instalar internamente um ‘estado de guerra’ que justifique a reorganização dos cosmos sociais para erigir padrões hierárquicos de organização regidos por modos autocráticos de regulação de conflitos.
Novos desafios para a democracia
Numa época de netwar (guerra em rede) parece óbvio que a democracia também terá de ser uma netdemocracy (democracia em rede). Mas assim como a netwar não é apenas uma guerra pela internet, uma guerra digital ou ciberguerra e sim uma guerra nas sociedades, o mesmo vale para a netdemocracy, uma democracia nas sociedades. Uma ‘guerra social’ (ou antissocial) é uma guerra como modo de vida. Isso só pode ser enfrentado pela democracia como modo de vida.
Tudo indica que a democracia tal como a conhecemos, a democracia dos modernos, acabou; quer dizer, acabou no futuro. Isso significa, em outras palavras, que não se consegue divisar uma linha temporal futura em que a democracia dos modernos, tal como está organizada e funciona, recupere sua vitalidade, superando suas crises atuais.
Uma democracia não-net não pode enfrentar a net-war. Net-war como já foi dito e repetido anteriormente, é guerra e, como qualquer guerra, é autocracia. Mas atualmente não é uma autocracia não-net e sim uma net-autocracy. A democracia, como processo de desconstituição de autocracia, só pode ser, nessas circunstâncias, uma net-democracy. No "modelo" atual de democracia falta sociedade, falta democracia como way of life, falta ambiente capaz de fabricar democracia contínua ou intermitentemente.
A democracia como modo de vida
Até agora, na modernidade, tratamos a democracia como regime político ou modo político de administração de Estados-nações. Parece que esquecemos de tratar a democracia como modo de vida em não-países. Mas foi assim que ela nasceu, desapareceu, renasceu, entrou em crise e só assim ela poderá renascer novamente.
É possível que o mundo esteja entrando, sob esta terceira onda de autocratização que nos atinge, numa espécie de "idade das trevas". Idades das trevas, do ponto de vista da democracia, acontecem na história. Para citar dois exemplos marcantes, tivemos uma idade das trevas na Grécia, de 1150 a 800 a.C. (do final da civilização micênica e a invasão dória ao florescimento das cidades-Estado gregas). Tivemos uma idade das trevas na Europa, de 476 a 768 (da queda de Roma à ascensão de Carlos Magno). Tivemos uma década das trevas no século 20, de 1934 a 1944 (da ascensão de Hitler ao final da segunda guerra mundial) dentro da primeira onda de autocratização caracterizada pelo surgimento dos totalitarismos (1922-1944), mas não tivemos uma idade das trevas como as duas primeiras citadas acima, que duraram, cada uma, cerca de 300 anos. Talvez ela esteja chegando.
Evidentemente, essa é uma leitura que, como toda leitura do passado, "cria" história. Em outras palavras, é uma escolha - baseada em evidências não conclusivas - de linhas temporais possíveis do passado. Mas não se pode descartar, como impossível, que uma nova idade das trevas esteja vindo agora, dentro da terceira onda de autocratização caracterizada pela ascensão dos populismos do século 21, o surgimento do eixo autocrático e a segunda grande guerra fria. A rigor não se pode saber, a não ser escolhendo linhas temporais possíveis do futuro - o que sempre acarreta o risco de trancar o futuro. Mesmo assim é preciso fazer isso, pois o que não tem futuro, também não tem presente.
Não há como atravessar a terceira onda de autocratização, que ora nos assola, sem um movimento molecular nas sociedades capaz de gerar democracia. Sobretudo capaz de gerar novos agentes democráticos.
Sabe-se que não há democracia sem democratas. Os democratas são - e sempre foram - minoria. Mas não podem existir abaixo de um número crítico em que não sejam capazes de cumprir as funções de um agente democrático.
Para ser um agente democrático, entretanto, não é suficiente ler toda a literatura democrática, se matricular em vários cursos de democracia ou apenas participar de encontros e conferências sobre democracia. Só há uma maneira de se tornar um agente democrático: convivendo com democratas, interagindo continuamente com democratas, em grande parte, mas não só, por clustering e cloning (que são fenomenologias da interação) (8).
Os agentes democráticos são netweavers: articuladores e animadores de redes de democratas. É assim que a democracia se reproduz: não por arrebanhamento de um número cada vez maior de pessoas para uma causa e sim molecularmente: de forma aberta, mas uma-a-uma. Porque os agentes democráticos não são a massa e sim o fermento na massa. No seu surgimento sempre estão envolvidos sintonia (reconhecimento de sense8s), sinergia (que só acontece na rede ou comunidade política) e simbiose (quando emerge aquela "entidade", cogitada por Jane Jacobs (1961), em "Morte e vida das grandes cidades americanas") (9).
Uma saída democrática capaz de interromper o processo continuado de erosão da democracia – em qualquer localidade do mundo onde processos de autocratização estão em curso – exige recomeçar de baixo para cima, multiplicando em cada lugar e setor de atividade o número de agentes democráticos ativos.
Isso implica não apenas aumentar o número de pessoas que dizem preferir a democracia a outros regimes políticos, mas multiplicar os atores políticos que sejam capazes de reconhecer a presença de padrões autocráticos, de detectar precocemente sinais de envenenamento e de desconsolidação da democracia, mesmo quando esses sinais são fracos ou subterrâneos, e de agir consequentemente para configurar novos ambientes democráticos.
Em outras palavras, não há como alguém exercer o papel de agente democrático sem comunidade política. Sem a prática da continuada conversação democrática, a democracia fenece. Sem ambientes favoráveis à realização de projetos comuns democratizantes, a partir da congruência de desejos dos interagentes, a democracia falece.
É em comunidades políticas que se pode exercer a prática da recorrente conversação democrática, que gera circularidades inerentes, dando nascimento a novas culturas políticas, usinando padrões de apreensão do mundo e de ação sobre o mundo capazes de se replicar. É em comunidades políticas que se pode realizar projetos comuns democratizantes - e isso define a própria ideia de comunidade política democrática.
Não há a mais remota possibilidade de alguém se tornar um agente democrático sem interagir recorrentemente em uma comunidade política. Não é uma conversão individual. Ninguém consegue, sozinho, desempenhar as funções de: a) se opor e resistir a qualquer tirania, seja dita de esquerda ou de direita, religiosa ou laica; b) recusar a guerra (ou não praticar a política como continuação da guerra por outros meios): repudiar o majoritarismo, o hegemonismo e o "nós contra eles", pois política não é guerra e sim evitar a guerra; e c) fermentar o processo de formação de uma opinião pública democrática.
Só em comunidades políticas democráticas é possível usinar novos padrões democráticos capazes de se replicar. O que se replica são caminhos sulcados no espaço-tempo dos fluxos, modos recorrentes de interagir, de ver e de interpretar, comportamentos compatíveis com ideias de liberdade como sentido da política – de que a nossa liberdade não termina, mas começa, onde começa a liberdade do outro (quer dizer, de que ninguém pode ser livre sozinho) –, com ideias de autonomia, com ideias colaborativas, de auto-organização e de rede (mais distribuída do que centralizada). Foi, aliás, o que aconteceu com a primeira democracia, que desapareceu como regime político estável em 322 a.C., mas foi retomada a partir do século 17 da nossa era.
Toda vez que conseguimos ensaiar democracia, geramos esporos que podem florescer em outras regiões do tempo… Ou seja, nada que fazemos nesse sentido estará perdido porque não conseguimos colocar no governo um democrata liberal radical como Péricles (cabe lembrar sempre que a democracia não é propriamente sobre governo e sim sobre controlar o governo).
Fazer tudo isso exige uma experiência de liberdade. Mas só numa comunidade política democrática é possível experimentar a liberdade (no sentido democrático originário do termo), que não é somente a mesma coisa que libertação (de um poder opressor ou da opressão de outrem). Usando como metáfora a saga (inventada) dos hebreus (como já fez Erich Fromm em 1970, em "O Espírito de Liberdade") (10): se libertar da escravidão do Egito é uma coisa, vivenciar a liberdade na travessia do deserto é outra coisa... e sozinho ninguém atravessa.
A liberdade democrática originária - nunca é demais repetir - é aquela que se define assim: a minha liberdade começa onde começa (não onde termina) a liberdade do outro e por isso ninguém pode ser livre sozinho (ser livre é interagir na pólis, não a cidade-Estado e sim a koinonia política; como escreveu Hannah Arendt, em 1958, em "A condição humana": "a pólis não era Atenas e sim os atenienses") (11).
Não é a apreensão de um conteúdo que torna alguém um agente democrático: é um modo de interagir. Não são novas ideias concebidas ou assimiladas que mudam comportamentos e sim novos comportamentos experimentados que mudam antigos comportamentos automaticamente replicados.
Por tudo isso, como já foi dito, não adianta apenas ler textos teóricos de democracia ou tomar aulas de democracia com os mais renomados cientistas políticos democráticos. Todo esse conteúdo corre o risco de não ser integrado a ponto de mudar comportamentos se não ensejar que o sujeito aprendente seja capaz de estabelecer novas conexões e de reconhecer padrões autocráticos (o que é fundamental para se converter em agente democrático e atuar como tal, pois aprender democracia é desaprender autocracia).
As dificuldades de aprendizagem da democracia não têm nada a ver com falta de inteligência (ou de consciência). A conversão à democracia está um andar abaixo: os receptores não estão no solo e sim no subsolo das consciências onde remanescem matrizes míticas, sacerdotais, hierárquicas e autocráticas fundantes do tipo de civilização em que vivemos há cinco ou seis milênios. Mesmo que tenha lido ou ouvido tudo que foi escrito ou dito sobre democracia, uma pessoa continuará "sub-pensando", para citar alguns exemplos, que o ser humano é inerentemente (ou por natureza) competitivo, que o comportamento coletivo pode ser compreendido a partir do comportamento dos indivíduos, que nada pode ser organizado sem hierarquia, que sempre serão necessários líderes destacados para viabilizar qualquer ação coletiva etc. Só a interação recorrente, a conversação continuada de uma comunidade política sobre democracia, pode encontrar (por insistência, até por tentativa e erro - ou comportamento aleatório) esses receptores e, entrando nessa região escura que subjaz na mente coletiva ou na cultura que se replica automaticamente no tipo de civilização em que vivemos, alterar essas matrizes. Essas matrizes, que geram padrões autocráticos, pertencem ao modo de vida patriarcal e é por isso que se pode dizer, como fez Humberto Maturana (1993), em “Amar e brincar” (12), que a democracia foi uma brecha aberta no muro da cultura patriarcal que, entretanto, continua se replicando agora, milênios após o seu surgimento.
Também não adianta tentar convencer pessoas envolvidas em interações adversariais (como é próprio num ‘estado de guerra’) a mudarem de opinião. Adaptando o que já escreveu James Clear (2018) (13), em “Por que os fatos não mudam nossas mentes”, convencer uma pessoa a mudar de opinião é, na realidade, convencê-la a mudar de tribo. Se alguém abandona as suas crenças corre o risco de perder também seus laços sociais. Você não pode esperar que alguém mude de ideia se você tira a sua comunidade. Você tem que mostrar a essa pessoa que existem outros lugares para ir. Ninguém quer que sua visão de mundo seja destruída se o resultado disso for a solidão. Uma pessoa só muda de opinião se mudar os seus relacionamentos, se conectando a novas redes e passando a interagir nelas recorrentemente. Só assim essa pessoa pode mudar suas crenças sem o risco de ser abandonada socialmente.
Onde está a saída? Fazer ou quebrar links locais. Os links locais regulam o mundo - como descobriu a Deborah Gordon (2018), estudiosa das redes e do comportamento das formigas, em “Os links locais regulam o mundo”:
“O padrão de ligações na escala local define as opções para estabilidade e transformação. Quase tudo o que acontece na vida é o resultado de uma rede. Fazer ou quebrar ligações locais: esta é maneira de mudar” (14).
Ainda que num mundo altamente conectado, porém, tal desafio seja glocal.
Isso não significa que, no debate público, os democratas não tentem persuadir as pessoas sobre seus pontos de vista. Mas, num ambiente de guerra instalado, não se pode esperar que as pessoas, já clusterizadas, conseguirão romper a “pegajosidade antropológica” que as mantêm nas suas tribos pela força de argumentos racionais. A persuasão continua sendo o principal “método” da democracia para a formação de uma opinião pública democrática nos processos de discussão e decisão, mas não altera a configuração dos grupos privados que se formam para o combate que transforma a política numa espécie de continuação da guerra por outros meios. Sim, o debate é público, mas as tribos são privadas; a militância é uma dinâmica própria de espaços privados, não públicos. Não se vai converter um militante em um agente democrático se ele não mudar de rede.
Por isso se diz que a democracia é uma rede de conversações. Não importa se uma rede (a comunidade política) tenha três, trinta ou trezentos nodos (pessoas): sem ela, ninguém se tornará um agente democrático; ou seja, não será capaz de desempenhar aquelas funções já mencionadas aqui. Provavelmente será desviado por algum interesse individual ligado à sua atividade ou carreira política e fará muitas concessões para sobreviver, se destacar e prosperar como um ator político. O risco é se transformar num íon social vagando num meio gelatinoso - como são muitos atores políticos que deixaram de atuar (ou nunca atuaram) como agentes democráticos, sempre tentando levar alguma vantagem. A correção de rumo tem de ser feita continuamente e só uma comunidade política é capaz de fazer isso. Os agentes democráticos - e suas comunidades políticas - são ilhas na rede (15). O grande desafio colocado para essas ilhas é como encontrar e reconhecer outras ilhas semelhantes, se conectar e interagir com elas.
Repetindo e resumindo: só em comunidades políticas democráticas é possível gerar novos padrões democráticos capazes de se replicar. Comunidades políticas capazes de fazer isso terão (ou almejarão ter) algumas características:
1 - Padrões de organização mais distribuídos do que centralizados; ou seja, redes, não hierarquias.
2 - Dinâmica de funcionamento baseada mais na lógica da abundância do que da escassez.
3 - Modos de regulação de conflitos pazeantes, ou seja, não-guerreiros (uma recusa da prática da política como continuação da guerra por outros meios ou da construção de inimigos).
4 - Emergência da multiliderança em vez de imposição do seguimento de um líder ou de poucos líderes.
5 - Cultura política pluralista e aceitação do diferente no mesmo espaço de convivência.
6 - Prática da conversação constante, amistosa e não-adversarial.
7 - Experiência de liberdade no prazer de viver a convivência.
8 - Associação voluntária para realizar projetos comuns que nasçam da congruência dos desejos dos interagentes.
9 - Abertura para a entrada contínua de novas pessoas (e para a saída de antigas pessoas).
10 - Ecologia de diferenças coligadas em vez de frente dos que pensam igual ou se comportam da mesma maneira.
Essa não é uma lista de objetivos morais elevados, uma promessa de bons propósitos, uma idealização inalcançável de comportamentos puros, retos e perfeitos, porém disposições que ensejam comportamentos que podem ser realizados por humanos, independentemente das virtudes dos indivíduos envolvidos, ainda que sua realização seja sempre impura, torta e imperfeita, como é mesmo qualquer ensaio de democracia como modo de vida e, também, como modo político de administração do Estado. A democracia nunca é limpa, reta e perfeita – e ainda bem.
Padrões democráticos podem ser ensaiados por comunidades de vizinhança, de prática, de aprendizagem, de projeto, sem que essas comunidades sejam (ou se assumam como) comunidades políticas. Como saber a diferença? Aqui temos que voltar à Hannah Arendt (c. 1950), em “O que é política?” (16), quando ela diz que a única matéria propriamente política é a liberdade. Todas as outras coisas que julgamos boas, como a igualdade, a fraternidade etc. – conquanto desejáveis – são extra-políticas. No entanto, a liberdade originária, aquela que está associada ao surgimento da primeira democracia, não era exatamente o que depois foi chamado de liberdade (reduzida à libertação; ou, apenas, a como se livrar da opressão de outrem).
A pólis ateniense era uma comunidade política. Mas muitas comunidades surgiram nos milênios anteriores, inclusive aquelas que experimentaram padrões democráticos de convivência, que não foram (ou não poderiam ser) consideradas póleis.
Algumas diferenças são mais fáceis de perceber. A pólis surgiu como comunidade de conversação (certamente como muitas outras anteriores), mas logo se opôs ao governo (a tirania dos psistrátidas, protagonizada na ocasião pelo autocrata Hípias, que governava Atenas com mão de ferro). De ambiente configurado segundo um padrão distribuído, favorável à livre e horizontal interação, virou um modo de controlar o governo (e, no caso ateniense, acabou levando à queda do governo autocrático). Essa característica genética distingue uma comunidade política dos outros tipos de comunidade, de sorte que é possível dizer, em termos genéricos, válidos em qualquer circunstância, que a democracia é um processo de desconstituição de autocracia.
Voltamos assim àquele décimo critério, exposto na introdução deste texto, para caracterizar um regime como democrático: “a sociedade controla o governo e não o contrário (a qualidade da democracia é medida pelos limites e condicionamentos impostos pela sociedade às instituições do Estado)”. Uma comunidade política democrática tem, portanto, essa característica distintiva, uma finalidade política explícita e por isso se diz que a democracia não é propriamente sobre governo e sim sobre controlar o governo – seja qual for o governo! Se opõe, inclusive, ao governo composto pelos próprios democratas, quando eles são compelidos a formar uma oligarquia para governar (já que, como se sabe, todo governo é incontornavelmente oligárquico).
Essa visão “negativa” do poder político que caracteriza uma comunidade política democrática está presente nos outros elementos que também comparecem na sua origem, como: a) a pólis surgiu para configurar e auto-organizar o commons a partir do livre proferimento da opinião e da modificação das opiniões pela conversação e persuasão – e foi isso, precisamente isso, que permitiu o surgimento de um espaço público (não privatizado pelo autocrata); b) a pólis adotou um modo de regulação de conflitos oposto ao modo guerreiro (que é a definição de autocracia); e, fundamentalmente, c) a pólis foi (e continua sendo, em qualquer época e lugar em que existir) um espaço para experimentar a liberdade (tanto no sentido de se livrar da opressão de outrem, resistindo à tirania do Estado e à tirania da maioria, quanto configurando um ambiente onde as pessoas possam se comprazer na convivência com qualquer um).
A liberdade como ausência de tirania permanece, todavia, fundante do arranjo que permitiu a existência de um povo sem um senhor. Aliás, a primeira referência claramente positiva à democracia foi escrita por Ésquilo (472 a.C.), em “Os Persas”. Respondendo à pergunta de Atossa (viúva de Dario) sobre os atenienses: “Quem é seu senhor? Quem lhes comanda o exército”, o corifeu responde: “Não são escravos nem súditos de ninguém” (17).
Não se pode esquecer, entretanto, que a democracia surgiu como modo de vida antes de se tornar modo político de administração do Estado ou regime político. Quando tiveram de desenhar um novo tipo de regime político - e governar - os primeiros democratas atenienses tiveram de enfrentar um grande problema, pois na verdade não sabiam bem o que fazer. Saiu algo meio casuístico, com regras cujo objetivo precípuo era evitar a volta de tiranias como a dos psistrátidas.
As pessoas podem chamar suas comunidades políticas democráticas como quiserem. Podem encará-las como sua pólis, micropólis ou “pólis paralela” - como fez Václav Benda (1978), em “Pólis Paralela” (18), no contexto do regime pós-totalitário da Tchecoslováquia. Aliás, a pólis onde nasceu a primeira democracia não era a cidade-Estado (de Atenas) e sim a comunidade (koinonia) política. A comunidade política democrática é uma nova “entidade” que surge quando as pessoas passam a viver a sua convivência. É assim que nasce e renasce, contínua ou intermitentemente, a democracia como modo de vida. E, depois, também como modo político de administração do Estado (ou regime político).
A democracia vai acabar?
A democracia não vai acabar enquanto existirem comunidades políticas gerando agentes democráticos. O futuro da democracia no mundo depende agora da capacidade dessas comunidades, seja em países ou não-países, de "produzirem" democracia. Por isso, talvez, o tema mais importante agora não seja propriamente como as democracias morrem e sim como as democracias nascem (ou renascem).
Quem almeja ser um agente democrático, um ator ativo da defesa da democracia contra as investidas autoritárias, deve dar o primeiro passo formando uma comunidade política para conversar sobre a democracia, estudar a democracia, empreender projetos democráticos nas localidades e setores onde atua.
Não é preciso muita gente para começar. A partir de três pessoas (um “átomo” – ou melhor, “molécula” – de rede) está valendo. Tudo começa com uma pessoa com alguns de seus amigos ou amigas, conhecidos ou conhecidas. Pode ser via um grupo em uma plataforma interativa ou em um programa de mensagens, ainda que seja melhor presencialmente. O "segredo" é que deve ser um lugar (virtual ou, de preferência, físico: a sua casa, por exemplo) onde essa pessoa consiga experimentar a liberdade - porque, sem isso, sem essa experiência convivencial constante, é muito difícil tornar-se um agente democrático.
A dúvida cruel é se tão pouca gente conseguirá fazer a diferença. Jane Jacobs (1961), em “Morte e Vida de Grandes Cidades”, escreveu:
“É necessário um número surpreendentemente baixo de pessoas que estabeleçam ligação, em comparação com a população total, para consolidar o distrito como uma Entidade real. Bastam cerca de cem pessoas numa população mil vezes maior. Mas essas pessoas precisam dispor de tempo para se descobrir umas às outras, para investir em colaboração proveitosa - e também para criar raízes nos diversos bairros menores locais ou de interesse específico” (19).
A conta de Jacobs dá 0,01%. Mas ela não está falando de agentes políticos democráticos e sim de participantes de atividades sociais que, articulados em rede (e interagindo em rede), podem produzir capital social e fazer a diferença numa localidade (que ela chama de distrito). Talvez para o caso de agentes políticos ativos, pudéssemos dividir seu fator por 100, o que daria 0,0001%. Embora todos esses números sejam bastante especulativos, eles fazem algum sentido. Três agentes políticos democráticos, numa localidade de 30 mil pessoas, podem exercer uma influência decisiva no conjunto. Ressalte-se que esses números (ou porcentagens) cumprem aqui um propósito apenas demonstrativo (não analítico) de porquê os agentes democráticos, mesmo tendo sido sempre muito minoritários, conseguem cumprir um papel decisivo no processo de democratização da política e da sociedade.
Continuando com essa especulação, num país de 100 milhões de habitantes, ainda que a maioria preferisse a democracia (ou o que entende por democracia) à ditadura, isso, entretanto, não bastaria. Precisaríamos que cerca de 10 mil se comportassem como agentes democráticos ativos (1 para cada 10 mil eleitores; ou seja, pelo menos 0,0001% de "fermento na massa", produzindo opinião pública democrática e também: se opondo aos populismos e a qualquer tirania, sejam ditos de esquerda ou de direita e não praticando a política como continuação da guerra por outros meios, repudiando o majoritarismo, o hegemonismo e o "nós contra eles"). Mas como ninguém se constitui como um agente democrático ativo sozinho, a não ser na convivência continuada com outros agentes democráticos, interagindo recorrentemente em uma rede ou comunidade política, precisaríamos, em números redondos, de 1.000 comunidades políticas democráticas (tomando uma média de 10 pessoas por comunidade). No caso do Brasil (com cerca de 160 milhões de eleitores), não temos essas póleis atualmente. Mas poderíamos ter, quem sabe, no tempo de uma geração.
Uma comunidade política de apenas 10 pessoas numa localidade (por exemplo, um município) de 100 mil pessoas pode alterar realmente a vida política local:
· envolvendo mais pessoas da localidade em processos de aprendizagem da democracia;
· fazendo palestras sobre democracia nas instituições de ensino e em outras organizações locais do Estado, da sociedade ou do mercado;
· experimentando mudanças democráticas na gestão de organizações da localidade (do Estado, da sociedade ou do mercado);
· substituindo a lógica da escassez pela lógica da abundância nos padrões de organização e nos modos de regulação de conflitos (por exemplo, experimentando construir organizações em rede e substituir votações por sorteio, sempre que possível, nos procedimentos internos dessas organizações);
· estimulando a construção de equipamentos urbanos que facilitem a convivência (praças, bancos, sombras, calçadas, calçadões etc.) e publicizando as praças existentes configurando ambientes comuns (geração social de commons);
· organizando assembleias de cidadãos nas regiões administrativas ou nos bairros para discutir os problemas da localidade e para apresentar soluções;
· criando ambientes comunitários de livre-aprendizagem sem restrições de entrada (etárias, de escolaridade etc.);
· instalando sessões de cocriação de soluções (tipo festivais de ideias e projetos) para os problemas da cidade, do bairro e das organizações locais e promovendo o desenvolvimento local;
· participando regularmente de programas de rádio e TV com audiência significativa na cidade ou na localidade;
· preparando candidatos comprometidos com a democracia para as próximas eleições;
· capacitando legisladores e governantes eleitos para exercerem democraticamente seus mandatos;
· fundando um jornal local (digital ou em papel) com análises do que está acontecendo, na localidade, na região, no país e no mundo, de um ponto de vista democrático;
· construindo uma rádio ou TV comunitária e inaugurando novos canais no Youtube e em outras plataformas de streaming;
· propondo mandatos coletivos, co-deputâncias ou co-vereanças;
· estimulando o uso dos programas de mensagens e das mídias sociais já existentes para interagir com o maior número possível de pessoas sobre as ações comunitárias que estão sendo realizadas;
· criando novos programas de mensagens e plataformas interativas (mídias sociais que possam servir de ferramentas de netweaving das redes glocais em formação - com o auxílio de Inteligência Artificial);
· criando aplicativos para acompanhar o desempenho dos representantes eleitos e novos mecanismos de interação dos cidadãos na esfera pública; criando (e testando) novos indicadores locais de democracia;
· fazendo levantamentos dos sinais de avanço do autoritarismo ou de desconsolidação da democracia na localidade (por exemplo, monitorando a porcentagem de pessoas que aderem à alternativas populistas);
· fazendo levantamentos dos ativos democráticos da localidade.
E muito, muito mais.
Mas comunidades políticas democráticas não precisam se formar necessariamente com base territorial. Elas podem ser organizadas em setores de atividades, conectando agentes democráticos que atuam em várias localidades, ou mesmo em diversos setores. E seria ocioso tentar listar especulativamente tudo que poderia ser feito por essas diferentes comunidades.
De qualquer modo, querendo ou não, gostando ou não, os democratas terão de articular “póleis paralelas”: comunidades políticas democráticas (como redes humanas, quer dizer, redes de pessoas; ou seja, sociais). Ou correrão o sério risco de desaparecer, submersos na terceira onda de autocratização que nos engolfa (20).
Epílogo
Se parece assim tão fácil, pelo que foi dito neste texto, articular comunidades políticas democráticas em vários lugares e setores de atividades, por que não encontramos essas comunidades com mais frequência? Onde elas estarão? Isso não seria mais um desejo do que uma realidade?
Claro que é um desejo. A democracia, ao fim e ao cabo, também é um desejo. Um desejo que cria futuro. A profusão dessas comunidades, sim, é um futurível.
É uma linha temporal possível do futuro o florescimento e a multiplicação de comunidades políticas democráticas que experimentem a democracia como modo de vida em não-países e, inclusive, que tentem reinventá-la como regime político nos países em que isso for possível - no mínimo resistindo às tiranias e fazendo oposição às autocracias que tendem a remanescer e a crescer em todo lugar nas próximas décadas do século 21. Não sabemos se isso vai acontecer, mas esperamos que aconteça, ou seja, desejamos que esse processo aconteça.
Quanto mais contada e repetida for essa história do futuro - de que as comunidades democráticas do futuro podem voltar - quanto mais antecipada for essa realidade futurível em ensaios concretos, conquanto sempre imperfeitos, no presente, mais provável que ela aconteça. No presente quer dizer então: após essa viagem de ida-e-volta ao futuro (21).
Isso se conseguirmos atravessar a onda atual de autocratização. Ou melhor: talvez a condição para atravessarmos essa idade das trevas em que já vivemos seja essas comunidades do futuro voltarem ao presente. Por isso este texto tem, como título insólito: As comunidades democráticas do futuro estão voltando.
Se não houver comunidades democráticas no futuro, isso significa que também não haverá política. Se não houver política no futuro, também não haverá política no presente. A política (a política propriamente dita, quer dizer, a política democrática) não existiu desde sempre. Foi inventada. E como foi inventada, pode ser reinventada. Ou não. Se não for reinventada, a democracia (quer dizer, a política) também acaba.
Hannah Arendt (c. 1950) foi profética, em uma passagem de seus escritos, publicados postumamente, sobre “O que é política?”:
"Os preconceitos que, na crise de hoje, se opõem a uma compreensão teórica daquilo que está em jogo, de verdade, na política, dizem respeito a quase todas as categorias políticas nas quais estamos habituados a pensar — mas sobretudo à categoria meio-objetivo que entende a coisa política como um fim situado fora de si mesmo, além da concepção de que o conteúdo da coisa política é a força e, por fim, a convicção de que o domínio é o conceito central da teoria política. Todos esses juízos e preconceitos nascem de uma desconfiança contra a política, em si não injustificada. Mas essa antiquíssima desconfiança transformou-se no preconceito atual contra a política. Por trás dela está, desde a invenção da bomba atômica, o medo muitíssimo justificado de que a Humanidade poderia apagar-se do mapa por meio da política e dos meios de força à sua disposição. É desse medo que nasce a esperança de a Humanidade ter juízo e, ao invés de se eliminar, elimine a política. Essa esperança não é menos justificada do que aquele medo. Pois a concepção segundo a qual a política existiu sempre e em toda parte onde existiram e existem homens, é ela própria um preconceito; o ideal socialista de uma condição final da Humanidade sem Estado — que, em Marx, significa sem política, não é de maneira alguma utópico: só é pavoroso" (22).
Os democratas temos todo o direito - e o dever - de dizer que não desejamos um futuro pavoroso, um futuro sem política. Por isso continuamos.
Como é que podemos saber que comunidades políticas democráticas do futuro estão voltando? A rigor, não podemos. Mas alguns sinais promissores já podem ser percebidos. Talvez o principal deles é que, apesar de tudo, ainda estamos aqui.
Notas
(1) Cf. V-Dem (2025). Gothemburg: V-Dem, 2025. “Democracy report 2025: 25 years of autocratization – democracy trumped?” Disponível em <https://www.v-dem.net/documents/61/v-dem-dr__2025_lowres_v2.pdf>
(2) Cf. The Economist Intelligence Unit (2025). London: EIU, 2025. “Democracy index 2024: What’s wrong with representative democracy?” Disponível em <https://www.eiu.com/n/campaigns/democracy-index-2024/>
(3) Essa lista de países é uma conjunção da lista das democracias liberais (do V-Dem) com a lista das democracias plenas (da EIU), extraídas de seus relatórios publicados em 2025 (ver notas 1 e 2, acima).
(4) Cf. o estudo preliminar de Augusto de Franco (2025). “Onde a democracia não funciona bem”. São Paulo: Inteligência Democrática, 17/05/2025. Disponível em <https://www.revistaid.com.br/p/onde-a-democracia-nao-funciona-bem-003>
(5) Larry Diamond (2015). “Facing up to the democratic recession”. Journal of Democracy, volume 26, number 1, Janeiro de 2015. Uma tradução provisória está disponível em <https://dagobah.com.br/facing-up-to-the-democratic-recession-o-artigo-historico-de-larry-diamond/>
(6) Augusto de Franco (2024). “As três ondas de democratização e autocratização”. São Paulo: Inteligência Democrática, 17/06/2024. Disponível em <https://www.revistaid.com.br/p/as-tres-ondas-de-democratizacao-e> Convém também ler Anna Lührmann e Staffan Lindberg (2019), “A third wave of autocratization is here: what is new about it?” Democratization, 26 (7), 1095–1113. https://doi.org/10.1080/13510347.2019.1582029.
(7) Sobre a netwar, cf.: John Arquilla & David Ronfeldt (1996). The advent of netwar. Santa Mônica: Rand Corporation, 1996; Idem (2001). Networks and netwars. Santa Mônica: Rand Corporation, 2001; John Arquilla (2021). Bitskrieg. Cambridge: Polity Press, 2021. Convém também ler: Augusto de Franco (2024). “Para quem ainda não entendeu a segunda guerra fria”. São Paulo: Inteligência Democrática, 19/11/2024; Idem (2024). “A netwar: sobre a segunda grande guerra fria”. São Paulo: Inteligência Democrática, 06/06/2024. Idem-idem (2025). “Estamos em guerra”. São Paulo, Inteligência Democrática, 16/06/2025.
(8) Para entender a fenomenologia da interação (recentemente descoberta) seria importante investigar a nova ciência das redes que surge, na passagem do século 20 para o século 21, da confluência de três campos investigativos: a SNA (análise de redes sociais), redes como sistemas dinâmicos complexos e redes como estruturas que se desenvolvem. Uma obra básica sobre o assunto ainda é a de Albert Barabási, Mark Newman & Duncan Watts (2006): The structure and dynamics of networks. Princeton: Princeton University Press, 2006. Claro que valeria a pena também ler outras obras de Barabási (2002 e 2010), Linked e Bursts; de Watts (2003), Six degrees; assim como de Steven Strogatz (2003), Sync; e de Nicholas Christakis (2009), Connected; e ainda de Deborah Gordon (1999, 2028 e 2023), Ants at work, Local links run the world (citada aqui na nota 14) e The ecology of collective behavior. Isso sem esquecer dos pioneiros, como Paul Baran (1964), On distributed communications; Robert Putnam (1993), Making democracy work; Pierre Lévy (1994), A inteligência coletiva; e Manuel Castells (1996 e ss.), The rise of network society - que dá início a uma trilogia necessária. Uma apresentação esquemática dos novos fenômenos interativos está disponível no capítulo 24 de um texto da antiga Escola-de-Redes intitulado “O que não são redes sociais”, de 16/05/2017, disponível em <https://dagobah.com.br/o-que-nao-sao-redes-sociais/>
(9) Jane Jacobs (1961). Morte e vida de grandes cidades. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
(10) Erich Fromm (1970). The revolution of hope (O espírito de liberdade). Rio de Janeiro: Zahar, 1970.
(11) Hannah Arendt (1958). A condição humana. São Paulo: Forense Universitária, 2016.
(12) Humberto Maturana & Gerda Verden-Zöller (1993). Amor y Juego: fundamentos olvidados de lo humano – desde el Patriarcado a la Democracia 5. ed. Santiago de Chile: Editorial Instituto de Terapia Cognitiva, 1997. Cf. também Maturana, Humberto (1993). La democracia es una obra de arte. Bogotá: Cooperativa Editorial Magistério, s/d. Disponível online <https://dagobah.com.br/a-democracia-e-uma-obra-de-arte/>
(13) James Clear (2018). “Why facts don’t change our minds”. James Clear.com (janeiro de 2018). Disponível em <https://jamesclear.com/why-facts-dont-change-minds>
(14) Deborah Gordon (2018). “Local links run the world”. Aeon, 01/02/2018. Disponível em <https://aeon.co/essays/the-most-important-connection-in-any-network-is-the-local>
(15) Cf. Bruce Sterling (1988). Islands in the net (Piratas de dados). São Paulo: Aleph, 1990.
(16) Hannah Arendt (c. 1950). O que é política? (Fragmentos das “Obras Póstumas” (1992), compilados por Ursula Ludz). Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998.
(17) Ésquilo (472 a.C.). Os Persas. São Paulo: Perspectiva, 2019.
(18) Václav Benda (1978). Polis paralela (17/05/1978). Disponível em <https://dagobah.com.br/a-polis-paralela-de-vaclav-benda/>
(19) Jane Jacobs, op. cit.
(20) Sim, porque dependendo da amplitude do processo de autocratização em curso, em alguns lugares e setores conseguindo inviabilizar ou dificultar seriamente as oportunidades de trabalhar ou empreender para quem não se enquadrar e obedecer a um poder despótico ou hegemonista, comunidades políticas democráticas poderão ser, inclusive, espécies de “módulos sociais de sobrevivência”.
(21) Sobre o presente do futuro cf. o artigo de Augusto de Franco (2025): “Sobre o futuro do passado e o presente do futuro”. São Paulo: Inteligência Democrática, 15/01/2025. Disponível em <https://www.revistaid.com.br/p/sobre-o-futuro-do-passado-e-o-presente>
(22) Hannah Arendt (c. 1950), op. cit.