Cidadania e liberdade
Poucos termos circulam com tanta frequência e pouca precisão quanto cidadania e liberdade. Eles aparecem em discursos de governo, campanhas cívicas e programas de poder como se nomeassem a mesma virtude pública. Não nomeiam. E a vitalidade de uma sociedade depende, em grande medida, da clareza com que distinguimos esses dois pilares.
Liberdade não é apenas a ausência de correntes. É presença ativa no mundo. Ela desperta quando indivíduos percebem que podem interromper a inércia do passado, imaginar alternativas e desafiar o conforto do senso comum. Liberdade é plural: exige coragem para suportar o atrito intelectual, disposição para confrontos respeitosos e maturidade para conviver com o dissenso.
Cidadania opera em outro registro. Tem status jurídico, forma política e uma ética própria: participar das escolhas coletivas, assumir o ônus e o bônus da deliberação comum. Democracias sobrevivem porque cidadãos aceitam regras, limites e transparência e porque compreendem que nenhuma vida compartilhada se sustenta sem algum grau de autocontrole e compromisso.
A relação entre ambas é assimétrica, embora interdependente. A liberdade inaugura; a cidadania estrutura. Uma abre caminhos; a outra constrói pontes. Uma cria o possível; a outra o mantém de pé.
Regimes autoritários compreendem bem essa engrenagem e a manipulam. Organizam consultas públicas que não consultam, conselhos que não deliberam, assembleias que apenas carimbam. Chamam esse ritual de cidadania. Em paralelo, comprimem o espaço crítico, intimidam dissidentes e estreitam os horizontes do possível. Produzem sociedades incluídas no papel e excluídas na vida prática. Nos romances distópicos, essa combinação é quase uma fórmula: cidadania reduzida à obediência, liberdade relegada à resistência.
O populismo opera um truque diferente, embora igualmente corrosivo. Invoca “o povo” — monolítico, quase místico — como se ele já tivesse decidido tudo. Quem discorda vira traidor; quem questiona se torna obstáculo. É assim que o iliberalismo avança: não por ruptura súbita, mas pela erosão lenta das democracias. Instituições confiáveis se desgastam, pesos e contrapesos enfraquecem, liberdades civis são comprimidas sob o pretexto de representar uma maioria que, no fim, não pode mais discordar.
A ordem pode nascer do medo ou da cooperação. A primeira é imposta; a segunda é conquistada. A política, enquanto prática humana, rejeita a ordem imposta e aposta na liberdade.
O ponto de equilíbrio está em reconhecer a liberdade como o sentido da política e a cidadania como a estrutura que permite que essa liberdade se realize com segurança, pluralidade e responsabilidade. Sem estrutura, a liberdade se perde em caos; sem liberdade, a estrutura se converte em opressão. Harmonizá-las é tarefa diária, institucional e cultural.
Compreender essa distinção é um diagnóstico. E, em última instância, uma escolha sobre o destino de qualquer comunidade política: renovar-se ou ruir.




