Como funciona a imprensa
Parte 1
Augusto de Franco, 98live (12/07/2024)
Em algum momento teremos de travar uma discussão séria sobre o papel e o funcionamento da imprensa (ou dos meios de comunicação profissionais). A imprensa é uma das instituições fundamentais da democracia dos modernos. Ninguém questiona que a liberdade de imprensa é essencial para a vitalidade do regime democrático. Onde não há liberdade de imprensa, com múltiplos sistemas alternativos de informação e análise disponíveis, não há democracia e sim ditadura. No entanto...
No entanto, a imprensa acabou constituindo uma caixa de reverberação e de reprodução. Jornalistas, analistas e outros profissionais de imprensa, repercutem, em geral, as abordagens sobre os eventos que fizeram outros jornalistas e analistas que tomam como referência. De sorte que a imprensa acaba noticiando e comentando o que a própria imprensa noticia e comenta. Não é por acaso que se lê, ouve ou vê as mesmas manchetes, as mesmas lides e as mesmas interpretações dos fatos.
Há uma profusão de meios profissionais de comunicação. Apenas para citar quatro países centrais. Nos EUA: The New York Times, The Wall Street Journal, The Washington Post, Los Angeles Times, USA Today, CBS, NBC, ABC, CNN, Fox etc. Na França: Le Monde, Libération, Le Figaro, Les Echos, La Tribune, L'Humanité, TF1, France 2, France 3, Canal+. Na Inglaterra: The Daily Telegraph, The Times, Financial Times, The Guardian, Daily Mail, BBC One, BBC Two, CBBC, Chanel 5, CITV. Na Alemanha: Der Spiegel, Deutsche-Welle, Süddeutsche Zeitung, ZDF, Das Erste, RTL, SAT 1, Pro7. O problema é que não há uma profusão proporcional de manchetes diferentes.
Por exemplo, nas últimas eleições para o parlamento europeu, a notícia compartilhada por todos era a da vitória estrondosa da extrema-direita - o que acabou não se revelando verdadeiro.
Outro exemplo, nas recentes eleições do Reino Unido as interpretações dominantes eram a de uma vitória esmagadora dos trabalhistas, mas o que aconteceu de fato foi que o Partido Trabalhista saiu, sim, vitorioso, porém com apenas 1/3 dos votos.
Mais um exemplo, nas eleições da França as interpretações dominantes apontavam, após o primeiro turno, uma vitória arrasadora da extrema-direita de Le Pen e que Macron teria dado um tiro no pé ao convocar eleições e, após o segundo turno, falou-se de uma vitória arrasadora da esquerda, mas a coalizão de esquerda teve 1/4 dos votos, verificando-se em seguida que o centro democrático de Macron está bem longe de ter sido esmagado e que Le Pen acabou em terceiro lugar.
Aqui no Brasil, jornalistas e comentaristas, além de seguirem o que dizem seus colegas nos países centrais ou mais desenvolvidos citados acima, seguem também uns aos outros. E aí vai se formando um "consenso", não fruto de um debate capaz de ensejar o surgimento de novas ideias e interpretações e sim por cloning e repetição. Quem diverge desse consenso é tratado como um alienígena, senão coisa pior. Em alguns casos tal "consenso" substitui o fato, a notícia. Uma vez conformada uma opinião dominante sobre um evento, essa opinião vira fato (indiscutível) e impede ou desestimula que se observe e analise o evento de outros pontos de vista. Quem fizer isso corre o risco de ser cancelado nas mídias sociais - que passaram a pautar os meios de comunicação tradicionais - e pode acabar sendo demitido por seu empregador.
Este artigo continua na próxima semana. Porque é necessário tratar também de outro aspecto de igual ou maior importância. A imprensa tem uma espécie de "tribunal" informal que julga as matérias pela sua proximidade ou distanciamento da interpretação dominante por repetição. Mas também tem uma "alfândega" ideológica que encara como contrabando opiniões dissonantes daquela que já foi aceita como ‘a’ correta.
Parte 2
Augusto de Franco, 98live (19/07/2024)
No artigo da última sexta-feira (12/07) começamos aqui uma discussão sobre o papel e o funcionamento da chamada imprensa (ou dos meios de comunicação profissionais) nos dias que correm.
Constatamos que “a imprensa acabou constituindo uma caixa de reverberação e de reprodução. Jornalistas, analistas e outros profissionais de imprensa, repercutem, em geral, as abordagens sobre os eventos que fizeram outros jornalistas e analistas que tomam como referência. De sorte que a imprensa acaba noticiando e comentando o que a própria imprensa noticia e comenta. Não é por acaso que se lê, ouve ou vê as mesmas manchetes, as mesmas lides e as mesmas interpretações dos fatos”.
Não combinamos nada com ele. Mas Yascha Mounk, um dos mais influentes cientistas políticos da atualidade, analisando ontem (18/07), na sua nova plataforma Substack, por que o jornalismo dos EUA não alertou a sociedade americana, com a devida antecedência, sobre o declínio físico e intelectual de Joe Biden, escreveu:
"Tanto seus incentivos pessoais quanto profissionais agora empurram os jornalistas para a conformidade. Muitos temem perturbar as suposições de seus leitores ou alienar seus colegas. Eles vivem nos mesmos poucos lugares e se socializam nos mesmos pequenos círculos sociais. Eles aprenderam que é mais seguro estar errado ao ficar com o rebanho do que estar certo ao atuar por conta própria. E assim, eles se convenceram de que estar do “lado certo” é mais importante do que dizer a verdade".
Et pour cause...
Ainda ontem, Ursula Von der Leyen foi reeleita para a presidência da Comissão Europeia. Segundo as primeiras manchetes de todos os grandes jornais na época das eleições legislativas da UE, a extrema-direita estava a um passo de conquistar a maioria no parlamento europeu.
Não estava.
Por que o jornalismo faz isso?
Bem... a explicação já foi exposta acima. Nas “bolhas” dos profissionais de imprensa formam-se “consensos” que substituem os fatos, as notícias. As opiniões dominantes viram fatos indiscutíveis, o que impede (ou desestimula) que se observe e analise os eventos de outros pontos de vista. Quem fizer isso corre o risco de ser cancelado nas mídias sociais - que passaram a pautar os meios de comunicação tradicionais - e pode acabar sendo demitido por seu empregador.
Neste artigo vamos examinar por que a imprensa tradicional erigiu, informalmente, uma espécie de "tribunal" que julga as matérias pela sua proximidade ou distanciamento da interpretação dominante por repetição. E por que ela acabou também se protegendo de outras apreensões da realidade por meio de uma espécie de "alfândega" ideológica que encara como contrabando opiniões dissonantes daquela que já foi aceita como ‘a’ correta.
Tratando as duas questões em conjunto. A imprensa-“tribunal” e a imprensa-“alfândega” se manifestam com mais saliência em conjunturas de polarização política, sobretudo em situações em que há polarização tóxica (quer dizer polarização entre dois populismos que parasitam regimes eleitorais).
O caso do Brasil
No caso do Brasil - vincado pela polarização entre dois populismos (lulopetismo x bolsonarismo) - há pesquisas mostrando que os militantes petistas se informam principalmente pela TV, ao contrário dos bolsonaristas, que preferem as mídias sociais e os programas de mensagens.
Os petistas nunca abandonaram o sonho de ter um canal próprio de TV (tipo uma TV Pravda). Não deu certo com a antiga TV Lula, nem com as tentativas mais recentes de ter um canal partidário. Agora eles acham que deu certo em um canal de TV a cabo e adotaram esse canal como se fosse seu próprio espaço de discussão. Por isso ficam tão indignados e intolerantes quando surge alguém na emissora que, destoando da média dos comentaristas, ousa criticar o governo e suas políticas nacionais e internacionais.
Eis o “tribunal-alfândega” em ação. Quando aparece um analista emitindo opiniões destoantes daquelas legitimações chapa-branca proferidas por outros comentaristas alinhados ao governo, os militantes iniciam imediatamente uma campanha de cancelamento dos primeiros chamando-os de fascistas para baixo. Parece uma coisa menor, mas não é. Democratas devem sempre olhar os sinais, os sinais fortes e os sinais fracos. Um processo de autocratização começa assim, ceifando uma flor singular num canto do jardim…
Se a emissora em questão (é ocioso declarar seu nome, pois todo mundo já sabe) se deixar capturar por essa patrulha do abafa, que visa a espancar a pluralidade, estará prestando um desserviço ao jornalismo e à democracia. A imprensa é uma instituição fundamental do regime democrático. Pode até, eventualmente, ser favorável a um governo, mas jamais pode aceitar ser parte orgânica do seu esquema de governança - como parece ser o caso.
Não é muito compatível com a democracia que um contingente ponderável (idealmente majoritário) de analistas e jornalistas políticos interpretem e disseminem (broadcasting) versões favoráveis às visões e propósitos de um organismo hegemonista que está no governo. Mas foi o que aconteceu. Mídias comerciais, em alguns casos, transformaram-se em plataformas de lançamento para a guerra nas mídias sociais (ao mesmo tempo em que, como já dissemos, passaram a ser pautadas por essas últimas).
Aproveitando a lição aprendida com os populismos-autoritários, o PT descobriu a importância de infestar as mídias sociais (e os programas de mensagens) com milícias digitais capazes de promover swarm attacks baseados em fake news, para destruir ou chantagear os meios de comunicação tradicionais ou profissionais que não se alinham às diretivas do organismo hegemonista, cancelar os considerados inimigos e reescrever a história a partir da repetição de versões pós-verdadeiras.
É significativo que o PT sempre tenha defendido o controle partidário-governamental (disfarçado de social ou civil) dos meios de comunicação e da internet. Mais recentemente, passou a insistir na proposição de leis (ou de reforma de leis aprovadas no parlamento por intervenção política do Supremo Tribunal Federal) que, a pretexto de coibir fake news, criam simulacros de "ministérios da verdade").
Ontem mesmo, no referido canal a cabo, a infantaria petista no jornalismo defendeu que fossem proibidos memes (como os que andam agora zoando Fernando Haddad, chamando-o de Taxad). Olha a “alfândega” funcionando. Olha o “tribunal” querendo sentenciar opiniões dissidentes.