Conservadores, liberais e socialistas?
Por que o conceito de "progressista" é imprestável
Augusto de Franco, Inteligência Democrática (31/10/2024)
Perguntas aos liberais que acham que conformam, juntamente com os socialistas, o campo dos "progressistas". Zé Dirceu é progressista? Estatistas são progressistas? Apoiadores de ditaduras de esquerda são progressistas?
Se você não quer ser conservador, seja inovador. Não precisa engolir essa baba de que tem que ser "progressista" (uma união de dois conjuntos líquidos imiscíveis: os liberais e os socialistas). Ser conservador ou inovador é um comportamento político, não uma ideologia.
Não raro revolucionários se travestem de progressistas, assim como reacionários se disfarçam de conservadores. Mas esses transformistas não são liberais. Ser liberal não se opõe a ser conservador ou inovador. Nem consiste em adotar a crença na liberdade como valor supremo e sim em tomar a liberdade - e não a ordem - como sentido da política.
O conceito de ‘progressista’ é inconsistente e imprestável como categoria de análise política. O que seria ser progressista? Trabalhar pelo progresso de quê? Acreditar que há progresso quando nos esforçamos para progredir? Quem não se esforça para progredir? Seria acreditar no efeito de alguma imanência histórica que nos levaria inexoravelmente para mundos melhores?
É simples mostrar que não se pode juntar socialistas com liberais na mesma categoria de ‘progressistas’. Alguns exemplos:
1) Como é que podem estar na mesma categoria analítica os que acham (e se comportam condizentemente com isso) que a democracia é um valor universal e os que pensam que ela é apenas, no máximo, um valor ocidental?
2) Podem estar na mesma categoria os que acham (e se comportam condizentemente com isso) que o sentido da política é a liberdade (inclusive a liberdade de ser infiel às próprias origens e de não ter rumo - o que compreende estar liberto do passado e do futuro) e os que pensam que é a ordem (ou seja, que a política seria uma guerra para implantar uma ordem mais justa preconcebida por seus portadores)?
3) Cabem na mesma categoria os que acham (e se comportam condizentemente com isso) que se trata de fortalecer a coalizão das democracias liberais em defesa da expansão de direitos políticos e liberdades civis e os que apostam numa nova ordem global promovida pela articulação das maiores ditaduras do planeta (como o BRICS e o Sul Global)?
Claro que a raiz dessa confusão está em achar que as forças políticas podem ser classificadas pela ideologia confessada por seus integrantes e não por seu comportamento. Os esquemas classificatórios baseados em ideologia são problemáticos. Por exemplo, o representado pelo seguinte diagrama, adotado por alguns analistas:
Por que, para a democracia, essa classificação ideológica das forças políticas está errada?
Quando você classifica as forças políticas por critérios ideológicos, por exemplo, dividindo-as em conservadores, liberais e socialistas - os dois últimos como componentes de um campo "progressista" - o que você não diz?
Não diz que conservadores podem ser democratas e, inclusive, liberais (liberais-conservadores).
Não diz que socialistas (incluídos entre os "progressistas") podem ser - e, no Brasil, majoritariamente são - populistas, quer dizer, iliberais ou contra-liberais (e, assim, adversários da democracia liberal).
Como foi dito, do ponto de vista da democracia, as forças políticas não devem ser classificadas pelas ideologias confessadas pelos seus integrantes e sim pelo seu comportamento político.
É necessário, além disso, fazer as distinções entre conservadores e reacionários e entre progressistas e revolucionários.
Reacionários, mesmo quando disfarçados de conservadores, não são democratas (no sentido liberal do termo). Revolucionários, mesmo quando travestidos como progressistas, não são democratas (idem). Veja as diferenças e semelhanças entre esses dois campos comportamentais populistas (cada qual a seu modo, quer dizer, com o seu próprio populismo) e, portanto, contrários à democracia liberal.
REACIONÁRIO
⚫️ Populismo-autoritário ou nacional-populismo (dito de "extrema-direita").
⚫️ A ordem como sentido da política e a defesa do pensamento "lei e ordem".
⚫️ A política como continuação da guerra por outros meios ("nós contra eles") para implantar uma ordem supostamente condizente com a "natureza humana".
⚫️ O aumento do uso da força policial como solução para "o problema da violência".
⚫️ Anticomunismo.
⚫️ Antiparlamentarismo.
⚫️ Antipluralismo.
⚫️ Racismo.
⚫️ Misoginia.
⚫️ Xenofobia.
⚫️ A volta a um passado (idealizado) onde a vida, supostamente, era melhor.
⚫️ O uso da da democracia (notadamente das eleições) contra a democracia (as eleições não são parte do metabolismo normal da democracia, capaz de realizar o princípio da rotatividade ou alternância, e sim um instrumento, um meio para alcançar e reter o poder).
REVOLUCIONÁRIO
🔴 Neopopulismo (dito de "esquerda").
🔴 A ordem ("mais justa") - e não a liberdade - como sentido da política.
🔴 A política como continuação da guerra por outros meios ("nós contra eles") para implantar uma ordem mais justa (pré-concebida pela teoria ou pela ideologia).
🔴 Antiliberalismo.
🔴 Antipluralismo.
🔴 Estatismo.
🔴 A crença numa imanência histórica, na existência de leis da história que podem ser conhecidas por quem tem a teoria verdadeira ou o método correto de interpretação da realidade e a luta de classes (ou a luta identitária: a afirmação da diferença convertida em separação) como motor da história.
🔴 A igualdade (ou a redução da desigualdade) socioeconômica como pré-condição para a liberdade (ou para a igualdade política).
🔴 A equivalência entre democracia e cidadania (ou a redução da democracia à cidadania para todos).
🔴 A fuga para um futuro (idealizado) onde a vida, supostamente, será melhor.
🔴 O uso da democracia (notadamente das eleições) contra a democracia (as eleições não são parte do metabolismo normal da democracia, capaz de realizar o princípio da rotatividade ou alternância, e sim um instrumento, um meio para alcançar e reter o poder).
Uma proposta em estudo
Já faz algum tempo estamos propondo outro tipo de classificação, baseada em campos comportamentais. O diagrama abaixo ilustra essa proposta:
Podemos divisar quatro grandes campos comportamentais, formados pelo cruzamento entre um eixo da democracia e um eixo da autocracia. Conservadores e inovadores estão próximos ao eixo da democracia. Revolucionários e reacionários estão próximos ao eixo da autocracia.
No campo do semi-quadrante 1 temos os neopopulistas (ou seja, os populistas ditos de esquerda) - como Obrador (no México), Xiomara (em Honduras), Petro (na Colômbia), Evo ou Arce (na Bolívia) e Lula (no Brasil). Alguns populistas de esquerda viraram ditadores e estão adjacentes ao eixo das ordenadas - como Maduro (na Venezuela) e Ortega (na Nicarágua).
Sobre o eixo das autocracias, mas que não são propriamente populistas, temos, por exemplo, os ditadores de esquerda Canel (em Cuba), Xi Jinping (na China), Kim Jong-un (na Coreia do Norte), Luong Cuong (no Vietnam), Sisoulith (no Laos).
No campo do semi-quadrante 3 temos os populistas-autoritários ou nacional-populistas (ou seja, os populistas ditos de direita ou extrema-direita) - como Bukele (em El Salvador), talvez Milei (na Argentina), Orbán (na Hungria), Erdogan (na Turquia), Meloni (na Itália), talvez Modi (na Índia).
Sobre o eixo das autocracias, mas que não são propriamente populistas, temos, por exemplo, Khamenei (no Irã), juntamente com os ditadores do Kuwait, do Turquemenistão, do Uzbequistão, do Afeganistão, do Bareim, de Burkina Faso, do Chade, da Eritréia, de Essuatini, da Guiné, da Jordânia, da Líbia, do Mali, de Omã, de Marrocos, de Mianmar, do Catar, da Arábia Saudita, da Somália, do Sudão do Sul, do Sudão, da Síria, dos Emirados Árabes Unidos e do Iêmem.
Nos campos dos semi-quadrantes 2 e 4 temos os liberais, que podem ser conservadores ou inovadores. São os democratas-liberais - não importa que se digam, ou sejam ditos, de esquerda (como Boric, no Chile) ou de direita (como Lacalle Pou, no Uruguai).
Conservadores podem ser democratas. Nada impede que um democrata não seja um inovador. Pode ser a favor de mudanças lentas e graduais (reformas) e contra, portanto, mudanças disruptivas (revoluções), pode ser contra a aborto, a favor da família monogâmica e do protagonismo das nações, contra a doutrinação nas escolas etc. O diabo é que, no Brasil e em outros países, os reacionários (que são, estes sim, antidemocráticos), se disfarçam de conservadores para pegar uma carona na mentalidade conservadora de boa parte da sociedade. Na verdade querem instrumentalizar essa cultura conservadora para empalmar o poder e quebrar a ordem democrática. Um conservador que não é democrata não é um conservador e sim um reacionário.
Conservadores e inovadores são importantes para a democracia. É preciso conservar as instituições que temos e é preciso inventar novas instituições que queremos. Ou seja, a democracia que temos é necessária para alcançarmos as democracias que queremos. Porque a democracia não é um modelo e sim um processo: o processo de democratização, que não pode retrogradar, nem ser paralisado.
Temos hoje entre nós, principalmente, dois campos comportamentais avessos à democracia liberal: o populismo-autoritário ou nacional-populismo e o neopopulismo. O primeiro é um parasita que mata o hospedeiro. O segundo é um parasita que o paralisa (quer dizer, paralisa o processo de democratização), impedindo que regimes eleitorais não-autoritários (ainda chamados de democracias apenas eleitorais ou flaweds) ascendam à condição de democracias liberais.