Cuidado com a demonização do parlamento
Claro que o parlamento atual não deveria tentar aprovar uma PEC da blindagem, nem um projeto de anistia. Mas isso faz parte do jogo político.
Temos de entender a natureza dos parlamentos, as instituições por excelência da democracia. Não é a de marchar em ordem unida para viabilizar o governo. Muitas vezes seu papel principal é o de contrariar o governo. Governos existem em qualquer regime, parlamentos independentes só nas democracias.
Um parlamento, ao contrário de um governo ou de um partido, não está desenhado para agir com um propósito. Cada parlamentar tem o seu propósito, cada partido tem o seu propósito e a democracia aposta que é da interação de todos esses propósitos e do caos gerado por ideias e comportamentos dissonantes, às vezes colidentes, que emergirá um tipo de regulação política, capaz de gerar continuamente ordens bottom up, não através do acatamento ou da adesão, ex ante à interação, de uma ordem top down.
De sorte que parlamentos compostos por membros egoístas podem aprovar projetos altruistas. Parlamentos compostos por representantes paroquiais, ignorantes de quase tudo, podem acabar aprovando reformas de grande complexidade e alcance para o desenvolvimento do país. Essa é a aposta da democracia, não a da escolha dos melhores (aristoi): do contrário seria uma aristocracia; não a de escolha de poucos (oligoi) e bons: do contrário seria uma oligarquia.
Algumas perguntas para problematizar a questão que vem sendo maltratada nos dias que correm:
O parlamento subornado pelo mensalão tinha menos parlamentares fisiológicos e corruptos do que o atual?
Um parlamento controlado pelo governo por meio de liberação de emendas e de nomeação para cargos públicos, tinha menos parlamentares fisiológicos e corruptos?
Parlamentos como o da Hungria, de El Salvador, da Turquia, da Nicarágua e da Venezuela, que sempre fazem a vontade do governo, são melhores para a democracia?
Um parlamento composto só por pessoas honestas, verdadeiros varões de Plutarco, que atuasse como correia de transmissão do governo, seria melhor para a democracia?
Por que o parlamento não era demonizado pelo PT quando a Câmara era presidida pelos petistas Marco Maia, Arlindo Chinaglia e João Paulo Cunha (porque, durante esses períodos, sua natureza, milagrosamente, era outra)?
Se, nas próximas eleições, elegermos um parlamento com maioria de deputados e senadores menos fisiológicos e corruptos, mas todos militantes ideológicos alinhados ao governo do PT (se for eleito pela sexta vez no último quarto de século) isso será melhor para a democracia brasileira?
O que irrita um partido hegemonista no governo é ser minoria no parlamento e não ter mais os mecanismos ilegais (como o mensalão) ou legais (como a liberação de emendas e a nomeação para cargos no Estado) para controlar o parlamento, não o fato de os parlamentares pensarem somente em satisfazer seus próprios interesses eleitorais.
Por tudo isso, temos de tomar cuidado com essa malhação do parlamento como uma espécie de Geni.
Foi um parlamento fisiológico e, em parte, corrupto que aprovou o impeachment de Dilma (do contrário nem teria havido a interrupção dos governos petistas e estaríamos há 22 anos sob seu domínio continuado).
Foi um parlamento fisiológico e, em parte, corrupto, que sob o governo Temer aprovou importantes reformas no Brasil, que não foram feitas (na quantidade e velocidade com que foram feitas) por quase nenhum governo da Nova República.
Foi um parlamento fisiológico e, em parte, corrupto, que rejeitou ou desarmou muitos dos projetos autocratizantes de Bolsonaro (e teria se colocado contra o golpe de Estado, se ele tivesse se consumado, pois não é de seu interesse acabar com seu próprio ganha-pão).
E é esse parlamento fisiológico e, em parte, corrupto, que ainda impede que o hegemonismo petista controle tudo.