Democracia: não estamos falando da mesma coisa
Quando falamos de democracia é bom ver se estamos falando da mesma coisa. Vamos ver alguns exemplos.
Alguém pode pensar que é democrata porque lutou contra a ditadura militar.
Alguém pode pensar que é democrata porque é antifascista.
Alguém pode pensar que é democrata porque é contra o bolsonarismo.
Alguém pode pensar que é democrata porque é contra o populismo de direita e as ditaduras de extrema-direita.
Nada disso, porém, basta para qualificar um ator ou força política como democratas.
Alguém pode ter lutado contra a ditadura militar para implantar outra ditadura (por exemplo, a ditadura do proletariado).
Ser antifascista não garante nada em termos democráticos (os ditadores Canel, Maduro, Ortega, Xi Jinping e Putin são declaradamente antifascistas).
Ser contra o bolsonarismo, o populismo de direita e as ditaduras de extrema-direita também não atesta conversão à democracia, a qual exige uma posição contrária a qualquer populismo, inclusive contra os populismos de esquerda e contra as ditaduras de esquerda.
Como resolver o problema de saber quais são os requisitos para caracterizar um ator ou força política como democratas? É preciso observar os critérios democráticos.
Os dez critérios para caracterizar um regime democrático em sua plenitude (liberal) são:
1 - Liberdade de associação, liberdade de expressão e liberdade de imprensa (existência de fontes alternativas de informação).
2 - Proteção dos direitos individuais e das minorias contra a tirania do Estado e a tirania da maioria (recusa ao majoritarismo e ao hegemonismo).
3 - Eleições limpas e periódicas, sufrágio universal, governos e parlamentos eleitos.
4 - Rotatividade ou alternância no governo (não apenas de pessoas, mas também de partidos ou forças políticas).
5 - Cultura política pluralista, oposições políticas democráticas reconhecidas e valorizadas como players legítimos e fundamentais para o bom funcionamento do regime.
6 - Publicidade ou transparência nos atos do governo (capaz de ensejar uma efetiva accountability).
7 - Instituições estáveis, equilíbrio entre os poderes e sistemas atuantes e efetivos de freios e contrapesos.
8 - Império da lei e judiciário independente.
9 - Forças armadas subordinadas ao poder civil.
10 – A sociedade controla o governo e não o contrário (a qualidade da democracia é medida pelos limites e condicionamentos impostos pela sociedade às instituições do Estado - o que pressupõe recusa ao estatismo).
Considerando o que se expôs acima podemos ver que muitas pessoas e forças políticas que se apresentam como estando no campo da democracia na verdade não estão. A não ser que tenham outro conceito de democracia, um conceito não-liberal.
É muito comum forças políticas se apresentarem como democráticas confundindo o conceito de democracia com o conceito de cidadania. Em geral, falam de cidadania para todos ofertada pelo Estado, quando “nas mãos certas”, quer dizer, comandado por forças políticas ditas progressistas. Cidadania universalizada é um bom propósito, é desejável, mas não é a mesma coisa que democracia. Isso pode ser ofertado por regimes não-democráticos, quer dizer, por autocracias.
Singapura, uma autocracia eleitoral (segundo o V-Dem), está fazendo isso. A China, uma autocracia fechada, diz que está fazendo isso a partir do seu próprio conceito de democracia: a chamada “democracia popular de processo integral”. Mas essa “democracia” chinesa não atende aos critérios acima.
Cuba, outra autocracia fechada, segundo Lula, faz isso. Para ele “o único país [na América Latina] que conseguiu dar um salto foi Cuba… eles resolveram o problema da cidadania”.
Certamente, em muitos casos não estamos falando da mesma coisa quando usamos a palavra democracia. Por isso os critérios acima são tão importantes. Deveriam ser impressos, emoldurados e pendurados, pelos democratas, nas paredes das instituições públicas e privadas, nas residências, nas escolas, nas igrejas, nas organizações da sociedade civil, nas empresas, em todo lugar.
P.S. É quase inútil discutir com lulopetistas sobre democracia. Eles capturaram a palavra democracia para designar outra coisa. O que Lula e o PT chamam de democracia não é o que se entende por democracia na Austrália, Áustria, Barbados, Bélgica, Canadá, Chequia, Chile, Costa Rica, Dinamarca, Espanha, Estônia, EUA, Finlândia, França, Grécia, Holanda, Irlanda, Islândia, Itália, Jamaica, Japão, Letônia, Luxemburgo, Maurício, Noruega, Nova Zelândia, Portugal, Reino Unido, Seicheles, Suécia, Suíça, Taiwan e Uruguai - ou seja, as democracias liberais (V-Dem) ou plenas (EIU). Para alguns petistas democracia é o que a China chama de "democracia popular de processo integral". Para outros é o regime vigente em Angola e Cuba. Há até quem chame de democracia o regime da República Popular Democrática da Coreia (do Norte). É difícil conversar quando as mesmas palavras não significam as mesmas coisas.
Tenho minha consciência tranquila quanto ao conceito de democracia. Trabalhei 15 anos com a disciplina de Direito e Legislação no curso técnico da rede pública. Minhas primeiras aulas eram sempre para incutir esses preceitos constitucionais. Plantei a semente, acredito que alguns frutos foram colhidos. O que falta a família e a escola é o preparo da criança, adolescente e jovem para o exercício da cidadania.