Procurei um democrata entre os líderes da Revolução Francesa e não achei nenhum. Minto. Na verdade, achei um, mas que nem francês era e sim americano: Thomas Jefferson, que foi embaixador na França de 1784 a 1789, tendo presenciado a preparação e o início da revolução. Diz-se que ajudou a redigir a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (que é de 1789). Talvez tenha sido o único democrata no pedaço.
Mas na própria América Jefferson estava praticamente sozinho com suas ideias liberais-inovadoras em meio àquela turma de "pais fundadores". Sempre desconfiei um pouco dos Federalistas tão cantados em verso-e-prova pela maioria dos "cientistas políticos". Jefferson acabou sendo do outro partido: o Republicano-Democrata. Hamilton, Jay e Madison eram problemáticos (sobretudo o primeiro) por sua desconfiança na democracia (a rigor na liberdade) e sua descrença na auto-organização (ao contrário de Jefferson). A variante americana da democracia, como se sabe, queria ser subjetivamente democrática, mas os pais fundadores tinham um certo medo das pessoas comuns, das turbas sublevadas e não disciplinadas que poderiam tomar, pela demagogia, o “cetro da razão” (para usar as palavras de Madison). Eles – sobretudo Madison e Hamilton – viviam apavorados com uma imaginária “tirania da maioria” (que nunca aconteceu na história em democracias). Seu modelo era Roma, não Atenas. Acabaram constituindo mais uma república dos que julgavam ser os melhores (aristoi), ou seja, objetivamente, uma oligarquia – posto que eram poucos (oligoi).
A crença central de Jefferson era que podemos confiar nos indivíduos para se governarem sem um mestre.
Isso lembra ou não lembra a primeira referência escrita que restou - talvez a única positiva no século 5 a.C. - da democracia ateniense, a de Ésquilo (472 a.C.), em Os Persas? Sobre os atenienses, escreveu Ésquilo, que "eles não são escravos nem súditos de ninguém". Ou seja, eram um povo sem um senhor.
A liberdade para Jefferson não era apenas ausência de coerção, mas a capacidade do povo de se autogovernar.
Jefferson propunha uma estrutura de governo começando por "repúblicas de bairros" (wards) para que cada indivíduo participasse ativamente da administração dos assuntos públicos diariamente.
Jefferson propôs então a divisão de cada condado em bairros, ou "centenas" (hundreds), de tamanho adequado para que todo cidadão pudesse comparecer e participar pessoalmente. Ele chegou a sugerir "cinco ou seis milhas quadradas" como um tamanho apropriado. O objetivo principal era que esses bairros fossem "pequenas repúblicas", onde os cidadãos administrariam diretamente os assuntos que estivessem "sob seus olhos", pois seriam mais bem geridos por eles do que por "repúblicas maiores do condado ou do Estado".
Mutatis mutandis, isso é ou não é um tipo de reforma distrital, como a proposta por Clístenes (em 509 a.C.)? Substituindo o genos, os clusters familiares da aristocracia fundiária, pelo demos, os distritos em que qualquer um podia participar, Clístenes instalou 100 distritos (que logo depois, salvo engano, viraram 119). Eram poleis, com suas próprias assembleias.
Os governos, para Jefferson, não são instituídos para manter a ordem e sim para garantir direitos inalienáveis, como a liberdade. Ele escreveu:
"Consideramos estas verdades como evidentes por si mesmas: que todos os homens são criados iguais; que são dotados pelo seu criador com direitos [inerentes e] inalienáveis; que entre estes estão a vida, a liberdade e a busca da felicidade; que para garantir estes direitos, governos são instituídos entre os homens, derivando seus justos poderes do consentimento dos governados; que sempre que qualquer forma de governo se torna destrutiva desses fins, é direito do povo alterá-la ou aboli-la e instituir um novo governo, estabelecendo suas bases em tais princípios e organizando seus poderes em tal forma que lhes pareça mais provável efetuar sua segurança e felicidade".
Isso lembra ou não lembra Spinoza (1670) que, no seu Tratado Teológico-Político, disse que o sentido da política não era a ordem e sim a liberdade? Com efeito, Spinoza escreveu: "O verdadeiro fim da república é, de facto, a liberdade".
Democratas, em geral, não são revolucionários (rupturistas) e sim reformistas-inovadores. Jefferson é uma exceção. De todos os fundadores da democracia (na verdade, da república) americana, Jefferson foi o que mais se aproximou de uma visão liberal-inovadora (tida na época por revolucionária).
Democratas (liberais-inovadores) não são apenas minoria. São uma minoria ínfima. Mas é isso mesmo. Não são a massa e sim o fermento na massa.
Estou explorando um livro tardio de John Dewey, que ele escreveu em 1940, quando já tinha 80 anos. Trata-se de "O pensamento vivo de Thomas Jefferson". Dewey fez a apresentação do livro e a seleção dos textos originais. Colocamos a versão original do livro - "The living thoughts of Thomas Jeffferson, presented by John Dewey" (New York: Longmans, Green and Co., 1940) em um NotebookLM para explorá-lo melhor com a ajuda dessa formidável IA.
Você também pode usar esse recurso fazendo uma assinatura paga da revista Inteligência Democrática. São apenas R$ 19,00 por mês (o preço de um cafezinho com um pão de queijo). É a nossa condição para sobreviver e manter regularmente atualizada a revista.
Quem possui um regime similar àquele de “quarteirões”, mencionado no texto, é a maravilhosa Nova Zelândia 🇳🇿, o paraíso que poucos conhecem. É um gigantesco campo de golfe ⛳️ com gente educada e civilizada dentro.