Do incômodo à invenção
Política, liberdade e transformação a partir de um desejo que não se conforma
Do incômodo à invenção: política, liberdade e transformação a partir de um desejo que não se conforma
Diogo Dutra, Inteligência Democrática (16/04/2025)
Este ensaio é uma tentativa de articular algumas ideias que formariam uma certa teoria da mudança social a partir da filosofia de Spinoza, em especial por meio de sua noção de conatus — o esforço vital de cada ser para perseverar em sua existência e aumentar sua potência de agir. Escrevo movido por uma busca pessoal e política: o desejo de compreender por que algumas pessoas, diante de um mundo atravessado por afetos tristes, desigualdades e formas sutis (ou explícitas) de servidão, escolhem agir, criar, provocar, inventar. De onde vem essa força? Como ela se sustenta? E, sobretudo, como ela se multiplica e se torna transformação coletiva?
O ensaio está organizado em três partes complementares, que se comunicam entre si, mas que também podem ser lidas como blocos de reflexão relativamente autônomos. Cada uma delas parte de conceitos fundamentais da filosofia de Spinoza e os articula com questões contemporâneas — da política à inovação, da ética à criação de mundos possíveis.
A Parte I, intitulada “O Incômodo: desejo, afetos e o mundo menos livre”, apresenta os conceitos centrais da filosofia de Spinoza — como conatus, afetos e servidão — e propõe uma leitura do incômodo ético como ponto de partida para a ação transformadora. É nessa primeira seção que procuro estabelecer o cenário de uma subjetividade em tensão com o mundo, e como esse conflito pode se tornar motor de mudança.
A Parte II, “A potência criadora: arte, inovação e os modos de agir”, explora o papel do ingenium (o modo singular de ser e agir) na criação artística, na inovação e nas formas coletivas de transformação social. É aqui que dialogo com a sociologia de Pierre Bourdieu para pensar os campos sociais como estruturas que tanto condicionam quanto podem ser subvertidas por sujeitos inquietos. Esta parte aprofunda a ideia de que toda transformação começa com um gesto — e que esse gesto pode se tornar processo coletivo.
A Parte III, “Democracia, clínica e a ética da liberdade compartilhada”, propõe uma reflexão sobre o conatus político, a liberdade como composição, e o papel da clínica dos afetos na construção de uma ética democrática. Trago também aqui elementos da minha trajetória e das influências recentes que me aproximaram ainda mais de Spinoza — especialmente o contato com abordagens clínicas que tomam sua filosofia como base para pensar o cuidado do desejo em tempos de esgotamento e dispersão.
Em tempos de medo e paralisia, este ensaio é também um convite a pensar a potência que nasce do incômodo, e o quanto o desejo — quando compreendido, cuidado e partilhado — pode ser o princípio de novas formas de vida em comum.
Parte I – O Incômodo: Desejo, Afetos e o Mundo Menos Livre
Há um tipo de inquietação que não passa. Uma sensação aguda de que as coisas poderiam ser diferentes, de que o mundo — esse que habitamos entre instituições rígidas, afetos tristes e relações de poder invisíveis — não está à altura da vida que poderia pulsar. Esse incômodo, que muitas vezes vem em silêncio, às vezes explode em forma de arte, de gesto político, de experimentação, de desobediência criativa.
É a partir dessa sensação que esse ensaio começa.
Ele começa também a partir de mim — Diogo Dutra, engenheiro de formação, empreendedor por prática e inquieto por natureza. Há mais de quinze anos venho atuando no campo da inovação, observando de dentro — e ao longo do tempo — a maturação dos ecossistemas no Brasil e fora dele. Acompanhei o surgimento de tecnologias promissoras, modelos de negócio ousados, políticas públicas bem-intencionadas, movimentos ativistas vibrantes. Vi uma geração inteira de inovadores e transformadores se levantar com coragem, energia e ambição de mudança. Vi também muitos deles murcharem, se dispersarem, adoecerem, se isolaram. E vi alguns poucos seguirem firmes até o fim, alcançando resultados impressionantes — mas por vezes à custa de exaustão, solidão, desalento.
Esse ensaio nasce desse lugar: o de alguém que vive por dentro os ecossistemas de inovação e transformação, que se sente parte do campo dos changemakers, dos inconformados, dos que não se contentam em assistir à repetição do que não funciona. Mas também de alguém que, ao olhar para si mesmo e para seus pares, passou a se perguntar: o que, de fato, nos move? O que sustenta o gesto criador diante do cansaço? Por que alguns se apagam enquanto outros insistem? Qual é a lógica invisível que atravessa esses movimentos?
Foi em busca dessas respostas que recentemente reencontrei Spinoza — filósofo que já frequentava meus estudos em democracia, mas que recentemente passou a me oferecer ferramentas mais íntimas e mais radicais para pensar a mudança. Em especial, seu conceito de conatus — esse impulso vital que nos faz perseverar no ser e buscar mais vida, mais potência, mais liberdade — passou a me ressoar como uma espécie de chave ética e política para entender os sujeitos que escolhem criar mesmo quando tudo ao redor desencoraja.
Este ensaio é, portanto, um mergulho nesse desejo inquieto: uma tentativa de pensar, de dentro, uma teoria da mudança social ancorada na experiência de quem cria, inova, transforma — e busca, entre o cansaço e o incômodo, uma forma de viver e agir que seja mais livre, mais potente e mais coletiva.
1. O conatus como força que insiste
Spinoza, filósofo do século XVII, diz algo aparentemente simples: tudo o que existe se esforça para continuar existindo. Esse esforço, essa tendência, esse impulso — ele chama de conatus. No ser humano, o conatus se expressa como desejo: não como carência, mas como afirmação de si. Desejar, para Spinoza, não é falta: é potência.
Mas o conatus, por si só, não garante liberdade. Ele pode ser travado, enganado, manipulado. Pode ser arrastado por afetos tristes — medo, culpa, ódio, inveja — que nos fazem agir não por nós, mas por reatividade. É isso que Spinoza chama de servidão: viver movido por causas externas que nos determinam, sem que compreendamos essas causas. A liberdade, para ele, é sempre proporcional à compreensão das causas que nos afetam.
Aqui aparece um ponto crucial: o incômodo ético não é só um estado emocional. É um sinal de que o conatus está colidindo com um campo de afetações que o diminui. E quando esse incômodo se transforma em gesto — em palavra, em ação, em criação —, temos o início de uma metamorfose.
2. Afetos e repetição: por que nos movemos (ou não)
Somos corpos que afetam e são afetados. Essa é a ontologia básica de Spinoza. Não há separação entre razão e corpo, entre emoção e pensamento: tudo é relação de potência. Os afetos são, portanto, os modos como nossa potência é modificada — para mais (alegria) ou para menos (tristeza).
Viver em um mundo menos livre é viver em um mundo onde os afetos tristes circulam com força: medo do outro, ressentimento, exclusão, precariedade, desinformação. Mas esses afetos não se repetem à toa — eles são organizados por estruturas sociais, que se repetem como hábitos, discursos, sistemas de valor. Daí a importância de entender por que repetimos o que nos faz mal — e como criar brechas para novos afetos, novas repetições, novos modos de agir.
Aqui, a ação transformadora é sempre afetiva, cognitiva e política ao mesmo tempo. Quando uma pessoa — um artista, um educador, um cientista, um ativista — cria uma imagem, uma experiência, uma tecnologia ou um gesto que afeta os outros de forma a aumentar sua potência, temos uma mudança de circuito: uma transição.
Talvez a partir dessas duas primeiras referências a conceitos spinozanos já dê para perceber a importância da ontologia proposta por ele — não como uma abstração filosófica distante, mas como uma estrutura bastante precisa e profundamente realista que oferece ferramentas para compreender a dinâmica dos afetos e dos comportamentos humanos.
Esse sistema não explica tudo, mas cria um mapa fértil para entender melhor (de maneira mais profunda) o que nos move e o que nos trava. E, talvez mais importante: oferece uma base teórica para pensar o tipo de recorte que venho tentando construir — esse esforço de dar forma ao incômodo que sentimos diante da repetição dos afetos tristes, e de identificar os gestos que escapam, que criam diferença, que abrem novos possíveis.
Minha hipótese, que ainda é uma pergunta em construção, é que nesse ponto de atrito entre o conatus e o mundo menos livre — quando o incômodo não paralisa, mas convida à criação — surge algo que pode ser chamado de potência criadora. E é aí que entramos na segunda parte deste ensaio.
Na Parte II, quero explorar a figura daquele que cria a partir de si — artista, inovador, transformador — mas cujo “si” não é uma essência isolada, e sim uma perfusão viva de relações, intensidades, afetos, experiências compartilhadas com o ambiente. A criação, nessa perspectiva, não é domínio total nem pura expressão subjetiva: é gesto que emerge de um modo singular de ser no mundo, e que, ao acontecer, mobiliza outros afetos, abre frestas, gera contágio.
Esse olhar, que para mim tem ganhado cada vez mais força na relação com o campo da arte, também se tornou fundamental para pensar o papel do inovador e do empreendedor. A figura de quem inventa algo novo — não como fetiche da disrupção, mas como resposta viva e ética a um incômodo real — me parece essencial para entender as transformações sociais que de fato deslocam estruturas, comportamentos e sensibilidades. É essa investigação que me atrai e que pretendo aprofundar na próxima parte do ensaio.
Parte II – A Potência Criadora: Arte, Inovação e os Modos de Agir
Esta é a segunda parte de um ensaio dividido em três blocos. Na Parte I, partimos de uma inquietação fundamental: por que, diante de um mundo atravessado por afetos tristes, tantas pessoas se resignam, enquanto outras — mesmo diante da escassez, do desencorajamento ou do esgotamento — ainda escolhem criar? O ponto de partida foi a filosofia de Spinoza, especialmente sua noção de conatus — o esforço de cada ser para perseverar no seu modo de existir — e a ideia de que a liberdade não é ausência de determinação, mas aumento de potência, de compreensão, de ação com os outros.
A partir disso, propus a hipótese de que o incômodo com o mundo menos livre pode ser um ponto de inflexão: quando não se converte em ressentimento ou paralisia, ele pode gerar gesto criador, dar origem a novas formas de vida. Spinoza oferece uma ontologia que sustenta essa ideia: somos corpos e mentes afetados o tempo todo, e tudo o que fazemos — sentir, pensar, imaginar, agir — é expressão de relações. Nesse sentido, criar é sempre compor: com o mundo, com os outros, com o que nos atravessa.
É a partir dessa ontologia que se abre a investigação desta segunda parte: o ato de criar como gesto ético e potente, não restrito à figura do artista no sentido tradicional, mas presente em quem propõe algo novo para a vida — cientistas, engenheiros, empreendedores, educadores, cuidadores, famílias, coletivos, comunidades. Criar, nesse sentido, é propor uma forma nova de existir e de se relacionar, é abrir espaço onde antes havia apenas repetição ou escassez.
Falo também a partir de mim: engenheiro e empreendedor que há mais de 15 anos habita o campo da inovação. O universo das startups, das tecnologias emergentes, dos ecossistemas de mudança, me ensinou que o processo criativo não é linear, nem romântico. Ele é feito de erros, iterações, rascunhos, pivôs, testes, escuta, afeto, frustração e descoberta. A imagem do “gênio” isolado não me convence. Mas a ideia de um ingenium — termo que Spinoza usa para falar do modo singular de imaginar e compor o mundo — me parece descrever com precisão a experiência de quem cria com responsabilidade, com atenção, com desejo de transformação.
Essa parte do ensaio vai percorrer esse território: como se dá o processo de criação a partir do conatus inquieto? O que torna um gesto singular capaz de afetar o mundo e os outros? Como a arte, a ciência, a tecnologia e a política — quando agem a partir da afirmação e não da negação — tornam-se práticas éticas? E por que esse modo de agir, por vezes invisível ou marginal, é talvez a forma mais concreta de liberdade possível?
Spinoza, aqui, não é apenas uma referência filosófica. É uma base ontológica e ética que dá forma a um modo de viver e criar que me interessa profundamente — e que, acredito, pode nos ajudar a pensar a mudança que importa: aquela que não se impõe, mas que compõe, que ressoa, que abre espaço para o novo.
1. O gesto criador e o engenho singular
Spinoza chama de ingenium o modo próprio que cada indivíduo tem de ser afetado, de pensar, de imaginar e de agir no mundo. É, em outras palavras, sua estrutura de sensibilidade e inteligência singular, moldada pelas experiências do corpo e do espírito ao longo da vida. Nenhum ingenium é igual ao outro, embora todos compartilhem a condição comum de serem modos finitos da substância infinita — Deus ou Natureza.
O ingenium não é uma essência estática, mas uma forma de composição com o mundo. É a partir dele que um artista capta o invisível no visível, que um inovador percebe uma possibilidade onde outros veem apenas repetição, que um educador cria linguagem onde antes havia silêncio. O gesto criador, em Spinoza, não é acessório: é a expressão mais íntima de um corpo que persevera no ser em sua máxima potência, ao compor com o mundo algo que ainda não havia.
Essa ideia de criação como composição também me interpela profundamente. Ao longo da minha trajetória na inovação, no agro, na educação e, mais recentemente, na política, o que mais me marcou foram justamente esses gestos singulares que surgem como resistência à estagnação: projetos, produtos, políticas, imagens e práticas que desafiam o automatismo social e criam outras possibilidades de existência. Muitas vezes, essas criações emergem não de um plano racional predefinido, mas do conatus — dessa insistência vital de um desejo que não se conforma.
2. Criação e inovação como expressão do conatus
Nem toda inovação é libertadora — sabemos bem disso. Em nome da disrupção, muito já se perpetuou: modelos de exclusão, reconfigurações de poder, soluções que agravam os problemas que dizem combater. Mas há, sim, uma forma de inovar que nasce do conatus lúcido, aquele que, ao perceber a tristeza estrutural de certos modos de vida, se recusa a reproduzi-los.
Nesse sentido, a inovação verdadeira — seja em tecnologia, arte, política ou organização social — é aquela que parte de um desejo de libertar o campo da repetição cega, de deslocar as engrenagens do hábito para abrir espaço ao novo. Não o novo como fetiche tecnológico-mercadológico, mas o novo como gesto de liberdade.
Essa criação pode ser individual, mas raramente é solitária. Ela emerge em rede, em relação, em campo. E aqui entramos no território da sociologia de Bourdieu, cuja articulação com Spinoza nos permite uma compreensão mais fina da transformação.
3. Campo, habitus e a ruptura criadora
Pierre Bourdieu nos oferece uma lente poderosa para entender a reprodução — e, às vezes, a transformação — das estruturas sociais. O conceito de campo designa um espaço social autônomo (como a arte, a ciência, a política) em que agentes disputam posições com base em diferentes formas de capital. Cada campo tem suas regras, seus valores, seus critérios de consagração.
O problema é que os campos tendem à reprodução: quem já detém capital simbólico molda o jogo a seu favor. O habitus — as disposições socialmente adquiridas — tende a ajustar os sujeitos ao campo, criando a ilusão de naturalidade. Mas Bourdieu admite: há momentos de dissonância, de conflito entre habitus e campo. E é aí que pode surgir a ruptura.
Agora, pensemos isso à luz de Spinoza: o sujeito que vive a dissonância não é apenas um desajustado — ele é alguém cujo conatus está colidindo com um campo que não lhe permite expandir sua potência. A tristeza é o primeiro sinal. O incômodo ético é o segundo. A criação é o terceiro — e mais potente — estágio. Criar, nesse contexto, é não se deixar determinar passivamente pelas regras do campo, mas agir sobre elas, deslocá-las, ou mesmo criar um novo campo.
É o que fazem muitos dos sujeitos que mais me impressionam — nas startups, nos movimentos ativistas, nos movimentos culturais. Eles vivem a tensão de não caber no campo, mas respondem a isso com invenção. Isso é profundamente spinozista: a metamorfose como expressão do conatus.
4. A emergência dos processos coletivos: entre o caos e a composição
Mas como uma criação se torna transformação social? Como um gesto singular — artístico, tecnológico, pedagógico ou político — se converte em processo coletivo?
Spinoza nos ajuda a pensar isso a partir da ideia de corpo composto. Um corpo é composto por relações de movimento e repouso entre partes. Quando dois corpos se encontram e aumentam mutuamente sua potência, temos um encontro alegre. Quando mais corpos se compõem de maneira harmoniosa, emerge uma nova forma de vida, uma nova estrutura de afetação. Isso vale para indivíduos, instituições, redes, ecossistemas.
A criação coletiva, portanto, não é soma de vontades. É emergência de um corpo comum que ainda não existia, mas que passa a existir quando diferentes conatus se encontram em composição. Não há mestre, nem plano: há processo. Isso também é algo que percebo nos espaços de inovação que funcionam de verdade: há uma inteligência coletiva que surge do encontro entre diferenças dispostas a compor.
O campo social, que para Bourdieu é um espaço de disputa, pode ser, em Spinoza, também um espaço de criação conjunta de liberdade. A liberdade, nesse sentido, não é oposição ao coletivo — ela só existe como composição com os outros.
5. Repetição, provocação e contágio: como a mudança se espalha
Spinoza também nos ajuda a entender como uma mudança — inicialmente localizada — pode se expandir, se replicar, se tornar padrão. Isso acontece não por convencimento racional puro, mas por afecção mútua. Quando somos tocados por um gesto criador — um filme, um projeto, uma política, uma fala — nosso corpo é modificado. Se esse afeto nos alegra, se aumenta nossa potência, ele se inscreve em nosso ingenium. E, ao reencontrar outros, o reproduzimos, de forma consciente ou não.
É assim que as transformações culturais, políticas e sociais acontecem: por contágio afetivo e por repetição produtiva. O inovador, o artista, o pensador, o educador são, muitas vezes, gatilhos desse contágio, sem necessariamente controlarem seus efeitos. Como um relâmpago que incendeia a relva seca, a faísca da transformação encontra seu tempo e seu terreno.
Esse contágio pode, então, romper ciclos de tristeza e instaurar novas repetições alegres, que ampliam a liberdade e a potência do corpo social.
Ao longo desta segunda parte, seguimos o rastro do conatus que se inquieta — aquele que não se acomoda diante da tristeza ou da escassez, e que, ao invés disso, cria. Seja na arte, na ciência, na política ou no empreendedorismo, vimos que a criação não é uma simples expressão de um “eu” isolado, mas uma composição com o mundo: um gesto que nasce de um ingenium singular, mas que só ganha sentido no encontro com os outros, com os afetos que circulam, com os campos que tensiona.
Spinoza, mais uma vez, oferece o arcabouço necessário para compreender esse processo de forma não idealizada, nem voluntarista. Ele nos lembra que tudo está interligado: corpo, mente, mundo, afetos, relações. E que a liberdade, ao contrário do que muitos pensam, não é rompimento absoluto, mas uma afirmação lúcida dentro da própria trama da realidade.
Esse sistema filosófico spinozano contrasta, em muitos aspectos, com outros sistemas de referência que também tentam explicar o mundo social. Um deles é o de Pierre Bourdieu — fundamental na sociologia contemporânea, especialmente na compreensão dos campos sociais, da luta simbólica e das estruturas de reprodução. Bourdieu nos dá ferramentas valiosas para entender como o mundo se organiza em disputas por capital (econômico, cultural, simbólico), e como os sujeitos são moldados por essas estruturas.
Mas o sistema bourdieusiano carrega consigo a marca de uma época: um pensamento social que opera sob a lógica da escassez — escassez de poder, de reconhecimento, de espaço de fala, de recursos. É o campo como um espaço de luta, em que o jogo está viciado, e no qual os deslocamentos só acontecem por tensão e substituição de posições. Essa estrutura é útil para diagnosticar, mas limitada para imaginar.
É aqui que o pensamento de Spinoza ilumina outros caminhos. Sem negar o real, sem romantizar a mudança, ele oferece uma ontologia da abundância: não como utopia, mas como possibilidade concreta de composição entre potências. No universo da inovação, muitas vezes falamos disso — de ecossistemas em que se cria valor, em que se amplia o campo, em que a solução de um problema gera novas redes, novas linguagens, novos mercados. É o contrário da lógica de soma zero.
Essa abundância criativa, no entanto, não é um milagre nem um luxo. Ela é fruto de trabalho, de relação, de repetição ativa, de tentativa e erro — como no processo criativo de um artista ou no ciclo de experimentação de uma startup. E mais do que isso: é um gesto ético. Criar é propor mais vida, mais conexão, mais potência. E essa proposta não é inocente: ela afirma um modo de existir no mundo.
É a partir desse gesto que entramos, agora, na terceira parte do ensaio — aquela que se volta para a ética de Spinoza e sua concepção de democracia. Porque, no fim das contas, criar é também um gesto político, mesmo quando não se declara como tal. A forma como criamos, o que priorizamos, para quem criamos e com quem compomos diz muito sobre o mundo que estamos ajudando a sustentar — ou a transformar.
A Parte III vai nos conduzir por esse terreno: a liberdade, para Spinoza, não é um atributo isolado, mas o resultado de uma composição ética e racional com os outros. É nesse sentido que a democracia aparece como o regime mais conforme à natureza humana — não por ser perfeita, mas por permitir que as pessoas participem, conheçam as causas que as afetam, e cooperem para ampliar sua potência coletiva.
E essa é uma questão urgente. Estamos vivendo tempos de recrudescimento político, de esvaziamento do comum, de ataques à própria ideia de liberdade partilhada. Se os sujeitos criadores — os inconformados, os inovadores, os artistas, os educadores — não compreenderem que sua ação local está conectada com uma busca mais ampla pelo valor da vida democrática, corremos o risco de desperdiçar a potência transformadora de uma geração inteira.
Mais do que um chamado à militância, que leva de novo a ideia de luta, trata-se de um chamado à consciência ética. À compreensão de que, mesmo quando agimos em escalas pequenas — no nosso projeto, na nossa rede, no nosso trabalho —, estamos afetando o tecido do comum. E que essa afetação, quando feita com razão e alegria, pode ser a semente de uma política mais potente, mais cuidadosa, mais livre.
É esse o caminho que abriremos na Parte III.
Parte III – Democracia, Clínica e a Ética da Liberdade Compartilhada
Esta é a terceira e última parte do ensaio “Do incômodo à invenção”. Na Parte I, investigamos como o incômodo diante de um mundo menos livre pode ser interpretado, à luz de Spinoza, como sinal de um conatus que busca mais vida, mais potência, mais liberdade — e não se resigna à repetição dos afetos tristes. Na Parte II, avançamos sobre a figura daquele que cria — seja artista, cientista, empreendedor ou educador — e propusemos que o ato criador, longe de ser apenas estético ou técnico, é um gesto ético: uma tentativa de ampliar o campo do possível, de compor com o mundo algo que antes não existia, de gerar diferença onde havia bloqueio.
Agora, na Parte III, voltamos o olhar para o coletivo: para a dimensão compartilhada da transformação. Porque, embora toda criação comece com um gesto singular, é no encontro com os outros que ela se torna processo social. Seja em uma empresa, em um laboratório, em uma escola, em um território ou em um movimento, o que dá sustentação e escala ao gesto criador é a formação de um corpo coletivo que compartilha afetos, ideias, linguagens e propósitos. E, como Spinoza nos ensina, um corpo composto de forma harmônica tem uma potência de agir muito maior do que a soma das potências individuais.
Esse corpo coletivo, quando atua em consonância, pode ser visto como um conatus coletivo: um esforço comum de perseverança no ser, de ampliação de liberdade, de enfrentamento da servidão — não apenas para resistir, mas para propor novos mundos. É nesse tipo de composição que surgem as mudanças que importam: aquelas que, mesmo sem controle total, são desejadas, são possíveis, são esperadas — no sentido ativo da esperança. Uma esperança que é diferente da fé passiva: é a esperança racional, que conhece as causas e age sobre elas.
Spinoza nos oferece uma ferramenta potente para pensar como esse contágio coletivo opera: sua teoria dos três gêneros de conhecimento. O primeiro gênero — baseado na imaginação, na experiência vaga e na opinião — é aquele por onde todos começamos, e por onde se reproduzem muitas das ilusões, medos e preconceitos. O segundo gênero — a razão — nos permite compreender as causas, agir com mais liberdade, cooperar de forma mais estável. E o terceiro gênero — a ciência intuitiva — nos conecta diretamente com a essência das coisas, com a eternidade que se expressa no tempo.
Mobilizações coletivas que desejam realmente transformar o mundo precisam saber operar nos três níveis. Precisam tocar o imaginário e o afeto (primeiro gênero), sustentar a cooperação racional (segundo gênero) e, quando possível, cultivar a intuição que nos liga à totalidade (terceiro gênero). Isso não é misticismo — é uma espécie de “estratégia” ética.
Essa é uma das teses centrais desta última parte: que os inconformados, os criadores, os transformadores — se quiserem de fato gerar mudança em escala — precisam compreender melhor como funcionam os sistemas de afetação e de conhecimento, para poderem agir com mais clareza e eficácia, tanto nas suas redes locais quanto na arena mais ampla da vida pública. Porque, no final das contas, essa busca individual por sentido, criação e liberdade precisa ser conectada à defesa de um modo de vida democrático.
Democratizar os espaços, os afetos, os saberes, os modos de viver — isso é mais do que uma pauta institucional. É uma escolha ética diante de um mundo que, em muitas partes, se fecha, se enrijece, se entristece.
Essa escolha não é um embate, mas uma composição. Não é uma luta contra, mas uma ação com. E talvez seja justamente essa a definição mais precisa — e mais urgente — de política no sentido spinozista: a arte de aumentar a potência coletiva de existir com alegria e razão.
1. A liberdade como potência compartilhada
Ao contrário da concepção moderna de liberdade como autonomia individual ou livre-arbítrio, Spinoza propõe uma visão radicalmente relacional: só é livre quem compreende as causas que o determinam — e age com os outros em comum, para aumentar a potência de todos.
Liberdade, então, é fruto de conhecimento e de composição. Isso significa que a liberdade de um corpo (indivíduo, grupo, instituição) depende da liberdade dos corpos com os quais se relaciona. Não há liberdade contra o outro, nem apesar do outro — só há liberdade com o outro.
Essa perspectiva muda radicalmente o modo de pensar a política. Não se trata mais de garantir direitos individuais abstratos, mas de construir condições concretas para que cada um possa viver de forma mais potente e menos determinada por afetos tristes — medo, ódio, submissão, ressentimento.
Aqui, Spinoza antecipa uma visão de democracia profundamente atual: democracia como organização política que permite aos indivíduos agirem de acordo com sua razão comum, em liberdade partilhada. E, para ele, esse é o regime político mais conforme à natureza humana.
2. A clínica dos afetos tristes: cuidar do desejo
Ao longo dos últimos anos, acabei caindo também em jornadas que pensam a clínica analítica a partir da filosofia de Spinoza e fui compreendendo melhor o papel dos afetos tristes — não apenas como experiências individuais, mas como formas de captura social do desejo.
Vivemos em tempos de amplificação dos afetos tristes: insegurança econômica, polarização política, desinformação, crises ambientais, esgotamento psíquico. As pessoas estão cansadas, ressentidas, adoecidas. Muitas não se movem porque não conseguem mais desejar de forma ativa — apenas reagem.
Spinoza nos ensina que o desejo não é dado: ele pode ser cultivado, fortalecido, reorientado. Por isso, a política também é clínica: é cuidado com as condições para que os corpos desejem de forma mais livre, mais alegre, mais potente. E essa talvez seja a tarefa mais profunda de quem se propõe a transformar.
Cuidar do desejo do outro não é colonizá-lo — é criar condições para que ele possa florescer por si, sem medo.
Esse entendimento atravessa muitas das minhas inquietações sobre inovação, transformação social e mudança de comportamento. O que move as pessoas? O que as trava? Como repetir afetos alegres e romper com os tristes? Como criar contextos em que o desejo se reative — e com ele, a potência de agir?
3. Política como cuidado, provocação e composição
Se a política é o campo em que organizamos nossos encontros, então ela precisa ser pensada como prática de composição: entre corpos, ideias, linguagens, instituições, experiências. Mas também como provocação criadora: uma ruptura ética com o automatismo das estruturas, uma recusa à repetição da servidão.
Nessa perspectiva, os sujeitos que agem a partir de um conatus que se incomoda — artistas, inovadores, educadores, ativistas — cumprem um papel central. Eles não representam a sociedade, mas a provocam. Eles apontam para possibilidades de recomposição afetiva, simbólica e institucional. Eles agem como gatilhos de metamorfoses coletivas.
É por isso que uma teoria da mudança social à luz de Spinoza não pode prescindir da arte, da criação, da experimentação. A mudança não se dá apenas pela luta formal ou pela denúncia — mas também pelo que move, toca, transforma, faz ver de novo.
A política, nesse sentido, é também estética — no sentido grego de aisthesis, aquilo que se sente, aquilo que nos desperta para o mundo comum.
4. Por uma teoria da mudança social a partir do conatus inquieto
A partir de tudo o que percorremos até aqui, podemos esboçar os contornos de uma teoria da mudança social spinozista, fundada no conatus que se incomoda, no gesto criador e na composição democrática:
Toda mudança social começa com um conatus inquieto, um desejo que colide com um campo de afetações tristes e busca, a partir daí, aumentar sua potência.
Esse desejo não é idealista — é ético. Ele quer perseverar no ser com mais liberdade, o que implica ampliar a liberdade dos outros.
A transformação ocorre quando o gesto singular se converte em composição coletiva — criando corpos compostos, razão comum, práticas compartilhadas.
A mudança é disseminada por repetição afetiva e contágio ético: o que afeta positivamente se espalha, se reinscreve nos modos de agir.
A democracia, nesse contexto, é o nome político da liberdade comum: não como ideal formal, mas como forma de vida em que o desejo de um é condição para o florescimento do outro.
A política, por fim, não é dominação nem gestão — é clínica, provocação, cuidado, invenção.
5. Estratégia ética para um conatus coletivo
Se a mudança social implica um aumento da potência coletiva, então ela só é possível quando os sujeitos, movidos por um conatus inquieto, conseguem se conectar, afetar-se mutuamente e compor um corpo mais potente. Spinoza nos oferece uma chave preciosa para pensar como isso se organiza: os três gêneros de conhecimento — imaginação, razão e intuição — não são apenas formas de conhecer, mas também estratégias éticas de agir no mundo. Uma política da transformação deve ser capaz de operar nesses três níveis, simultaneamente e com consciência.
O primeiro gênero, da imaginação e da experiência vaga, é onde nascem as narrativas, os símbolos, os afetos compartilhados. A maior parte da comunicação pública opera nesse nível — e, por isso, os afetos tristes se espalham com tanta facilidade. A estratégia aqui não é rejeitar esse nível, mas criar outros repertórios, outras imagens, outras linguagens que mobilizem a alegria e a possibilidade. Criar experiências sensíveis que toquem o desejo, que façam imaginar outros mundos.
O segundo gênero, da razão, é onde se constroem os vínculos duráveis. A compreensão das causas que nos afetam nos permite agir com mais liberdade, cooperar com clareza, sustentar projetos que não se desfazem com o vento. Aqui, a estratégia passa por formações críticas, redes de coaprendizagem, metodologias colaborativas, processos de escuta e análise conjunta. É nesse campo que o conatus coletivo se estrutura como ação consciente.
O terceiro gênero, mais raro e sutil, é o da intuição — aquele que nos permite perceber a essência das coisas como parte de um todo. Ele aparece quando um grupo sente que algo essencial está em jogo, que há sentido em comum, mesmo sem palavras. Aqui, a estratégia não é didática, mas vivencial: criar espaços de profundidade, de cuidado, de presença, onde o desejo se reoriente e se fortaleça. É o lugar do silêncio, da contemplação, do reconhecimento mútuo.
Essas três dimensões, integradas, podem orientar uma estratégia ética de transformação. Sem romantismo, mas com rigor e sensibilidade, é possível pensar ações que toquem o afeto, sustentem a razão e revelem o sentido. Para quem deseja mudar o seu entorno, ou mesmo propor a manutenção de seu modo de vida — seja na escola, na empresa, no laboratório, em uma cidade ou mesmo uma nação —, compreender como esses níveis operam e como se articulam é parte fundamental da tarefa política. Porque, no fim, democratizar a vida é isso: compor mundos nos quais possamos viver mais juntos, mais lúcidos, mais livres.
Chegando ao fim deste ensaio, volto à minha inquietação inicial. Ela continua viva — talvez até mais urgente agora. Foi esse incômodo com o mundo menos livre, essa pergunta insistente sobre o que nos move e por que alguns ainda insistem em criar, que me trouxe até aqui. No percurso, tentei articular uma filosofia — a de Spinoza — com uma vivência: a de quem passou mais de uma década construindo, observando e colaborando com projetos de inovação e transformação. Uma filosofia e uma prática que, ao se encontrarem, me ajudaram a dar nome, forma e estratégia a algo que, até então, era apenas força difusa.
Este ensaio não buscou apenas refletir, mas propor uma forma ética de agir no mundo, que nos ajude a sustentar e multiplicar gestos criadores, espaços de liberdade e práticas democráticas. Ao longo das três partes, percorremos as camadas do conatus — do desejo individual ao corpo coletivo —, entendendo que a mudança só ganha potência quando compartilhada. Tentamos mostrar que a criação não é um ato isolado de genialidade, mas uma composição entre sujeitos, tempos, afetos e ideias. E que só há liberdade real onde há cooperação racional e afetiva, ancorada no reconhecimento das causas que nos determinam e nos conectam.
Spinoza nos oferece uma ética da potência — e com ela, um convite: não se trata de resistir ao mundo apenas com raiva ou denúncia, mas de criar com alegria e clareza. Em tempos em que os afetos tristes se alastram — o medo, o ressentimento, a exclusão —, precisamos provocar uma epidemia positiva de ideias, imagens, gestos e ações que ampliem a potência de existir. Uma cadeia de afetações alegres, uma repetição virtuosa, uma inteligência coletiva comprometida com a preservação e reinvenção do nosso modo de vida democrático.
Este é um chamado. Mas não é um apelo à militância tradicional. É um convite a quem já age — intelectuais, artistas, inovadores, empreendedores, cientistas, educadores, líderes comunitários, cuidadores — e que muitas vezes se mantêm à margem da política institucional ou se afastam das disputas simbólicas, por cansaço, por desalento, ou por não se verem nesse lugar. Não é preciso vestir uma nova armadura ideológica — é preciso vir com o que já somos e com o que já fazemos, para co-operar na criação de novas formas de pensar e praticar a política.
Porque, no fim, o que está em jogo não é apenas a sobrevivência de instituições democráticas formais. É a preservação do modo de vida que nos torna mais humanos, que nos permite desejar com os outros, agir com os outros, inventar com os outros. E isso começa em cada projeto, cada rede, cada gesto ético de composição.
Criar é resistir. Compor é agir. E viver democraticamente é, acima de tudo, sustentar o desejo de liberdade em comum.
Texto emocionante, inspirador de presentes e futuros possíveis. Grato Diogo.