Duas opiniões sobre polarização
Joel Pinheiro da Fonseca
Trechos do artigo “A universidade é de esquerda?” publicado na Folha de São Paulo de 28/05/2024
"Um dos sintomas mais miseráveis da polarização que vivemos é a tentativa, por parte de ambos os lados dela, de empurrar quem não está 100% com eles para o lado contrário da disputa política. Este é o ponto em que a adesão política passa a funcionar como uma religião exclusivista. Não é mais uma proposta de transformação do mundo, que precisa buscar novos defensores para que seja implementada na democracia, e sim uma maneira do indivíduo se sentir moralmente superior, levando-o, portanto, a excluir de seu círculo quem não pertence ao grupo dos puros.
A sociedade democrática só resiste na medida em que uma massa crítica de cidadãos e instituições não cederem a essa lógica binária, cuja consequência lógica é a guerra civil —se houver semelhança de força entre os polos— ou a ditadura, se um deles for mais forte. E uma dessas instituições é, sem dúvida, a universidade, em especial as faculdades de humanas, que são aquelas que se propõem a falar sobre a sociedade. Se deve existir um espaço em que o pensamento seja explorado com total liberdade e profundidade, sem se render aos interesses políticos do momento, é a universidade. Não parece, contudo, que seja o caso".
Luiz Sérgio Henriques
Trechos do artigo “Esquerda, democracia e despolarização” publicado em O Estado de São Paulo de 26/05/2024
"Não é verdade que a polarização destrutiva dos nossos dias seja uma novidade absoluta. Considerando apenas a política do século 20, regimes totalitários de tipo fascista afirmaram-se com base na desumanização do adversário transformado em inimigo, para usar a imagem muito usada, mas ainda contundente. Os que se opunham valentemente a esse tipo de regime por vezes lutavam o combate errado, vendo a política como contraposição frontal de blocos inconciliáveis. Era a política de classe contra classe, uma variante de jogo de soma zero. Em caso de vitória, no futuro Estado socialista não poderia haver lugar para o “inimigo do povo.
Se não é novidade, a polarização atual vale-se da velocidade sobre-humana das redes sociais e da quase ilimitada possibilidade de manipulação de consciências à disposição dos autoritários. A desordem informativa que daí deriva não é inocente. Ela tem como alvos preferenciais as democracias ocidentais – uma categoria, a de Ocidente, que aqui não tem conotação geográfica e serve para designar sociedades em que, readaptando José Guilherme Merquior, se possa ser anarquista na cultura e socialdemocrata na política e na economia, sem excluir outras formas de contribuir para o bem comum. O objetivo daquele impulso de destruição não criadora é, precisamente, a divisão da sociedade em campos que se recusam ao mútuo reconhecimento. Deve vencer o mais forte – e o vencedor leva tudo...
Em torno da ideia de democracia iliberal articula-se o autoritarismo, ou coisa pior, em escala global. Bem sintomática a rejeição de princípio expressa no conceito. Democracia até pode haver, desde que entendida como eleições plebiscitárias sob o império do medo. As instituições contramajoritárias propriamente liberais, que protegem minorias e controlam o poder, é que devem ser limitadas ou excluídas – por isso, diante do nome liberal é que se coloca o prefixo negativo. A cereja do bolo é o homem forte, o líder providencial, o Pai da Pátria.
O programa dos democratas só pode partir de uma estratégia pertinaz de despolarização. A esquerda, em particular, não estará à altura do seu desígnio histórico de igualdade, caso aceite e reitere, por incapacidade teórica ou inabilidade prática, a divisão da sociedade em metades rivais. Simplesmente, não há projeto transformador viável em tal ambiente de ódio e desavença até afetiva, como hoje se diz. Ao contrário, não por acaso há uma floração de livros e filmes que retratam uma distopia em cujo cerne aparece a guerra civil, o maior dos flagelos, ao entronizar a violência como recurso supostamente legítimo.
A despolarização é o fundamento mais essencial das políticas de frente democrática, que bem ou mal voltaram ao discurso público. Sem tal fundamento, não será possível convocar a generalidade dos atores (inclusive a direita constitucional) para a tarefa comum de defender a convivência civilizada, que, com seus confrontos legalmente regulados, é o oposto exato de qualquer versão do terraplanismo político".