Ensaio sobre o sorteio
Rafael Ferreira (27/05/2024)
Os índices de democratização medidos por diversos institutos nos vários países do mundo estão decaindo de forma preocupante. Junte-se a isso, o número de análises que tratam do crescimento do populismo e o efeito que isso provoca na qualidade das democracias são cada vez mais frequentes.
O populismo, por mais controverso que seja conceitualmente, está umbilicalmente ligado à realização de eleições. No entanto, como a eleição é considerada um requisito para a existência da democracia, pouca ou nenhuma importância se dá a essa relação tomada como natural.
As eleições pressupõem um conhecimento do eleitor sobre aquilo que interessa eleger. O interesse se reveste de personalidade e vira representação na figura do eleito. Esse conhecimento do eleitor é tido como fundante e, mesmo que suscetível aos efeitos deletérios da manipulação política, a base de decisão é dele.
Os eleitos formularão e aprovarão as medidas necessárias à governança da sociedade. O resultado das leis e políticas públicas é construído através da interação entre esses eleitos. A população representada tem o papel de ratificar esse resultado dando aval ou não àqueles que participaram do processo de tomada de decisão.
Ao eleito cabe assumir posições que entenda corretas do ponto de vista de quem o elegeu. A prestação de contas visa agradar a esses e a outros que possam garantir o número de votos necessários à sua reeleição. A perspectiva da reeleição é algo probabilisticamente palpável. Raros são os casos de eleitos que se conformam com o exercício de um mandato só. Quando ocorre, é a exceção que confirma a regra. Há uma intensa troca de sinais entre eleitos e eleitores no sentido de fazer com que esses se mantenham fieis àqueles.
Mas será que por mais que haja identificação entre eleitor e eleito, as decisões de uns e outros seriam as mesmas se houvesse troca de lugar? A identificação entre eleitores e eleitos é suficiente para considerar equivalentes as posições de uns e outros nos assuntos de política pública, levando-se em conta que as decisões públicas implicam em interação entre os agentes envolvidos, muitas vezes fazendo com que esses mudem de posição no decorrer do processo decisório?
Há um aspecto nas assembleias de cidadãos escolhidos por sorteio que vêm sendo usadas de maneira paulatina em vários países no mundo que poderia alterar o entendimento de que eleitos representam os eleitores que é a possibilidade de qualquer um assumir a responsabilidade pela governança na sociedade.
O voto que dá poder é substituído pela escolha aleatória que pode dar poder. A simples possibilidade de ser governo ou legislador altera a postura de quem tem uma posição passiva, de só delegar, para uma postura ativa de ter que assumir uma posição de poder. Alie-se a isso a experiência de cada um, num universo de qualquer um, poder relatar a experiência de assumir uma posição de comando e essa experiência ser só mais uma experiência e não “a” experiência do grande líder.
A inteligência coletiva que surge da interação entre pessoas desconhecidas é uma oportunidade que o parlamento oferece. Acontece que a disputa desigual entre os já eleitos que dispõem de tempo e recurso para competir pela reeleição e aqueles que tentam a primeira vez com muito menos recurso inibe o aparecimento de outras configurações de força coletiva.
Outro ponto a se destacar é a questão do mérito que privilegia a noção de merecimento como superior à aleatoriedade. O mérito tomado como fundamental para a qualidade das decisões. O bom que puxa o melhor numa disputa que reproduziria a seleção natural das espécies ou atuaria como mão invisível do mercado eleitoral.
A qualidade da nossa representação já responderia por si só que isso não é verdade. Mesmo que não se diga que essa elite de eleitos não representa a sociedade, a ideia de elite por merecimento é carente de confirmação. Isso sem levar em consideração a lei eleitoral que privilegia os que já estão no poder e que torna distante a noção de competição equânime e justa entre os competidores por um cargo eletivo.
Dito tudo isso, é razoável imaginar novas maneiras de escolha de representantes baseadas na aleatoriedade, no sorteio. Qual o efeito isso teria, por exemplo, na despolarização e no recrudescimento do populismo? É um tanto inútil argumentar contra a implantação do sorteio alegando-se que não funciona se isso não foi experimentado.
As experiências implementadas em democracias mais consolidadas como a Irlanda e a França, com temas polêmicos, já trazem resultados no mínimo questionadores da certeza em favor das eleições. A esse respeito vale visitar o site DemocracyNext para conhecer melhor essas experiências.
Do que decorre a pergunta: por que não experimentamos aqui, no local onde moramos, em instâncias onde não há restrição legal? Aguardar por uma alteração legislativa superior para alterar a forma de escolha de nossos representantes pode ser frustrante para gerações como a minha que sempre imaginou que a reforma política poderia ser realizada no país. A alternativa a isso é experimentar formas inovadoras de escolha. Por que não fazer?
Restringir a Representação à Redação da Legislação, paralelamente, por impulsionar de forma revigorativa a democracia como modo de vida. A infraestrutura física está montada. O gov.br amplia de forma significativa o potencial interacional dos segmentos de poder.