Esquerda: a rota da derrota
Antonio Risério, Substack Antonio Risério (18/02/2025)
Assim como depois o faria o espiritismo kardecista francês, o comunismo marxista sempre se apresentou ao mundo como ciência – no caso, ciência da história, por mais infundada e mistificadora que fosse a pretensão. E, entre as leis inflexíveis que estabeleceu, desenhando e definindo “de uma vez por todas” o futuro histórico da humanidade, estava a da inevitável passagem do capitalismo para o socialismo, como consequência do próprio desenvolvimento das “forças produtivas” – vale dizer, do avanço tecnológico, que tornaria obsoletas as relações sociais vigentes, forçando assim o salto de um sistema econômico a outro.
Mas o que de fato aconteceu, no real histórico concreto do mundo, foi exatamente o contrário. A partir das revoluções de 1989 no Leste europeu, o que vimos, antes que uma passagem do capitalismo para o socialismo, foi o inverso: a passagem do socialismo para o capitalismo. Países como a Polônia, a então Tchecoslováquia, a Hungria e a então Alemanha Oriental escolheram dar as costas ao socialismo e tomar o caminho ocidental da sociedade democrática de mercado. Em seguida, o colapso da antiga União Soviética, desestruturada pelas reformas de Mikhail Gorbachov, veio para liquidar a fatura. Foi a falência completa do chamado “socialismo real”.
Com isso, a esquerda ocidental se viu sem prumo e sem rumo. Ou, como se dizia antigamente, nos bons tempos anteriores ao “politicamente correto”, mais perdida do que filho de puta no dia dos pais. Seus dogmas ruíram de cabo a rabo, a começar pelo já citado princípio do “materialismo histórico”, que assegurava a inevitabilidade do advento do socialismo. E o proletariado, suposto portador do destino histórico da humanidade, abria mão, solenemente, da missão que os marxistas lhe atribuíam. No mundo democrático ocidental, buscava mais benesses do sistema do que sonhar com transformações sociais profundas. No leste da Europa, abraçava a democracia e o capitalismo, depois de quase um século de opressão política e econômica.
Que fazer? – perguntava-se a velha dama, repetindo a questão do velho Lênin. Privada repentinamente do seu discurso dogmático centenário e vendo sua esperança utópica se dissolver e seguir ralo abaixo, a esquerda ofereceu então um espetáculo de inconsistência, penúria ideológica e absoluta falta de imaginação política e social. Não conseguiria mais andar com suas próprias e cansadas pernas. Havia que tomar muletas (e ideias) de empréstimo. Procurar saídas a qualquer preço, ainda que para isso se visse levada a mandar o marxismo clássico às favas. E foi o que aconteceu. Na procura angustiada de uma tábua de salvação, foi encontrá-la numa ideologia supostamente contestadora que vinha sendo gerada por uma “nova esquerda”, no mundo acadêmico-cultural norte-americano: a ideologia multicultural-identitarista. Agarrou-se então a ela com as forças que lhe restavam. E, ao vestir a nova fantasia, atirou no lixo o figurino marxista tradicional.
De cara, abandonando o universalismo de ascendência iluminista, que caracterizara a esquerda desde o seu nascimento, em favor do tribalismo multicultural-identitarista. Juntamente com isso, fechando os olhos para questões econômicas e mesmo para a existência de classes sociais, traços definidores centrais do comunismo marxista, em favor de uma concentração obsessiva em temas e problemas de raça e sexo. Logo, em vez de se preocupar com o pão de cada dia da população, passou a empregar seu tempo e suas energias em dividi-la e subdividi-la, em fragmentá-la segundo linhas de cor, de “gênero”, de diferenças étnicas e idiomáticas, etc. Neste sentido, a própria esquerda tratou de enterrar-se a si mesma. E com uma estranha espécie de euforia, como se gritasse, trocadilhescamente: “rip rip hurra”. A paisagem que então se desenhou foi esta: de mãos dadas, a esquerda tradicional rendida e a nova esquerda identitarista triunfante, ambas igualmente desconectadas do movimento real da vida e do mundo.
Não interessa o que nos une, só o que nos separa – foi o mantra adotado. Ênfase total na irredutibilidade das diferenças, instituindo “apartheids” e acirrando conflitos. Foi esta adesão integral ao tribalismo um dos fatores fundamentais para a derrota de Hilary Clinton. E a mesma alienação diante do cotidiano de todos, com seus problemas sociais e econômicos mais imediatos, favoneou o avanço mundial da direita. Críticas do analista social Mark Lilla e do senador democrata Edward Kennedy de nada adiantaram. Apontavam com lucidez os equívocos que se avolumavam à esquerda. Mas ninguém queria saber de críticas. Houve a ilusória recuperação com a vitória de Joe Biden sobre Trump. E isto levou a esquerda liberal democrata norte-americana a pensar que Trump mais não teria sido do que um hiato. Hoje, a gente percebe com clareza que Biden é que representou o hiato. Porque a direita continuou a avançar no âmbito dos países da União Europeia. E Trump voltou com força total para a campanha presidencial norte-americana deste ano.
Mais uma vez, a esquerda se viu sem perspectiva. Sem capacidade de formulação. Enredada nos guetos do identitarismo, não teria como encontrar uma linguagem concreta para se dirigir ao conjunto da sociedade. Centrava-se no binômio democracia-aborto, enquanto a direita sublinhava os problemas centrais da economia e a questão política da imigração, coisas que, de fato, diziam respeito a toda a sociedade norte-americana. Daí, o teatro a que acabamos de assistir. Diante da recusa da vasta maioria da sociedade norte-americana aos dogmas e delírios da esquerda identitária – e das bocas de fogo da artilharia pesada de Donald Trump e seu MAGA –, Kamala Harris encenou um recuo marqueteiro tristemente farsesco. Sim: Kamala – uma bonita mulata de classe alta, filha de professores universitários, cujo avô materno pertenceu ao corpo diplomático do governo da Índia – se travestiu. Ou melhor: foi vira-casaca para travesti nenhum botar defeito. Começou a posar de moderada, centrista, etc., enquanto a direita não se cansava de denunciar o seu passado “extremista”. Neste caso, a direita estava certa. E Kamala sabia muito bem disso. Daí que a sua performance só enganasse correligionários predispostos e a massa de ingênuos e desinformados.
Kamala Harris sempre foi extremista, sim. Sempre foi exemplo e exemplar do extremismo identitarista. E não é preciso providenciar nenhum “close reading”, nenhuma exegese mais trabalhosa, para evidenciar o fato. Ela mesma o proclama, alto e mau som, com todas as letras, no seu livro “The Truth We Hold”. Lembremos aqui, de passagem, suas próprias palavras, num trecho explícito do volume: “Quando os ativistas vierem marchando, quero estar do lado de dentro [dos palácios do poder], para deixá-los entrar”. Sem tirar, nem pôr, este é o seu projeto político: chegar ao poder para abrir a porta ao avanço da esquerda radical identitarista. E foi justamente isso que ela tentou ocultar em sua campanha à Presidência, enrolando-se inutilmente nas bandeiras da democracia e do nacionalismo, sem esquecer a flâmula do aborto.
Ao negar assim o credo do dia anterior, antes mesmo que os galos republicanos precisassem cantar mais de uma vez, Kamala estava certamente trapaceando. Praticando uma espécie evidente de estelionato ideológico. Mas, principalmente, estava assumindo, sem o dizer, uma fratura exposta: a falência e a morte da política identitarista, agora no contexto anterior e maior de uma falência geral dessas esquerdas. Porque nem a esquerda tradicional, nem a esquerda identitarista, têm hoje o que dizer à sociedade “in globo”, em seu conjunto e não em seus escaninhos setoriais de sexo, gênero, raça, etnia e o que mais houver. E o fracasso em lidar com as questões imediatas e concretas da vida vem do que fato de que elas mesmas se encarregaram de cortar os vínculos que poderiam ter com a realidade.
Em resumo, este é o quadro que hoje vejo à minha frente. Uma esquerda (somando aqui a tradicional e a identitária, como elas mesmas o fizeram), repito, uma esquerda que, em sua arrogância narcísica, considerava que tinha nas mãos o futuro, que era senhora absoluta do devir da humanidade, agora se vê confinada ao passado. E sem qualquer perspectiva, pelo menos neste momento, de um mínimo levanta-te e anda.
[Escrito logo depois da derrota de Kamala Harris para Donald Trump, este texto foi publicado originalmente em “Valete”, republicado na “Roda Democrática” e nas redes sociais de Roberto Freire]