Estamos em guerra
As pessoas não se dão conta porque não conseguem sair do passado
Os analistas continuam falando em direito internacional. Estão com dificuldade de sair do passado. Já estamos em guerra. E na guerra não há direitos, apenas a vontade dos mais fortes e a resistência dos mais fracos.
A guerra da Ucrânia não é contra a Ucrânia e sim contra as democracias liberais europeias. A guerra do Irã contra Israel não é contra o governo populista-autoritário de Netanyahu e sim contra o único regime democrático do Oriente Médio (ilhado por quinze ditaduras da região).
Ucrânia e Israel são episódios de guerras quentes regionais que servem de espoleta e de fonte de alimentação para um novo tipo de guerra mundial. Por exemplo, a guerra em Gaza não é (só) em Gaza, mas no mundo todo. Legiões de pessoas, nas principais cidades de dezenas de democracias liberais, saem às ruas incendiadas para gritar “Palestina livre, do rio ao mar” (o que significa, objetivamente, que estão em guerra contra Israel).
Como assim estamos em guerra? - me disse há pouco um amigo no WhatsApp. As pessoas pensam: “Afinal, onde estão os tanques? Nenhum míssil caiu aqui”. Dizer - acrescentou ele - que não estamos em guerra parece o mais lógico, tendo como referência as guerras mundiais que presenciamos no passado.
Mas as pessoas não pensam que, depois das armas nucleares, dificilmente teremos uma guerra mundial nos moldes das duas guerras mundiais do século passado. O contexto mudou. E as análises continuam se baseando em exemplos do passado. Agora temos um novo tipo de guerra global: a netwar, que não é apenas ou principalmente guerra cibernética, guerra informacional ou de propaganda pelas mídias sociais. É guerra fria (uma segunda grande guerra fria, embora, como foi dito, com episódios localizados de guerras quentes). Mas guerra fria é guerra. É uma guerra social (ou antissocial) que atravessa todas as fronteiras, polarizando e dividindo as sociedades democráticas. Mas guerra antissocial é guerra: aliás, o mais perigoso tipo de guerra que se pode imaginar.
Em recente artigo no seu substack (16/12/2025), sobre por que estamos à beira da guerra, Dean Blundell escreveu:
“Por que ninguém está dizendo “Guerra Mundial” (de propósito). Existe um motivo pelo qual nenhum desses líderes está usando a frase que todos estão pensando. Os governos aprenderam uma lição brutal durante a COVID: o pânico colapsa os sistemas mais rápido do que a realidade jamais conseguiria”.
A Rússia está na vanguarda desse novo tipo de guerra mundial. Embora não seja a potência mais forte do eixo autocrático (que reúne as maiores e as piores ditaduras do planeta, como a China, a Bielorrússia, os países do “fimdomundistão” da Ásia Central, a Coreia do Norte, o Irã, o Vietnam, Angola e outras ditaduras africanas, Cuba, Venezuela, Nicarágua - para não falar do tenebroso projeto Bharat de Narendra Modi) a Rússia é a ponta de lança do mais perigoso ataque, já ocorrido na história, das ditaduras contra as democracias liberais.
Curiosamente, o ataque mais bem sucedido do eixo autocrático às democracias liberais não foi a guerra da Rússia contra a Ucrânia ou a guerra do Irã contra Israel e sim a eleição de Trump - evento no qual os sucedâneos da KGB de Putin cumpriram um papel destacado. O conluio Trump-Putin está destruindo qualquer tipo de ordem legal internacional capaz de proteger as democracias.
E não adianta muito apelar para as cortes internacionais, para os tratados assinados pelos países, para as Nações Unidas ou para as agências multilaterais. Nem Trump, nem Putin, nem Xi, nem Khamenei, nem Modi, nem os ditadores menores, querem saber de nada disso, a não ser como argumentos instrumentais de luta política praticada como guerra.
Voltando, pois, ao início deste artigo e ao tema que o motivou. Como dizia a canção “Se você pensa”, de Erasmo e Roberto Carlos, que é de 1968: daqui pra frente, tudo vai ser diferente… As últimas sete a oito décadas de ordem liberal não foram um estado normal do mundo ao qual se possa voltar. Foram uma anomalia histórica, que não se repetirá.



