Guerra haverá, porque já há
Se você realmente se interessa pelo assunto é bom ler antes o meu artigo As três ondas de democratização e autocratização. Mas vamos lá.
Examine a imagem que ilustra este post. Estamos em 2024, em plena terceira onda de autocratização. Isso tem consequências. As pessoas, em geral, não tomam plena consciência dessas consequências.
Antes de qualquer coisa devemos reconhecer que não há onda de autocratização sem guerra. Na primeira onda de autocratização, marcada pela ascensão dos totalitarismos (1922-1944), tivemos a segunda grande guerra (quente). Na segunda onda de autocratização (1962-1988) tivemos a primeira guerra fria. É razoável pensar que na atual terceira onda de autocratização (que começou no início deste século e não tem prazo para terminar), marcada pela ascensão dos novos populismos iliberais do século 21, tenha surgido uma segunda guerra fria (e possa até eclodir uma terceira grande guerra quente).
Tivemos sorte os que nascemos após a derrota dos totalitarismos do século 20 (1945-1961) e pudemos experimentar, no auge da idade adulta, a brisa fresca da terceira onda de democratização (1989-1999). Os que nasceram depois estão sentindo agora os efeitos deletérios (do ponto de vista da democracia) da mais perigosa onda de autocratização que já assolou a humanidade na era moderna, que não se sabe quando vai acabar, com a ascensão dos novos populismos iliberais e a segunda grande guerra fria que eclodiu (ou se instalou mais ostensivamente) na terceira década do século 21. A experiência que essas pessoas têm da política é a da divisão e da polarização: ou seja, da política como continuação da guerra por outros meios. É explicável que elas não gostem muito de política (as que gostam apreendem a política como uma espécie de religião, seita ou torcida de time de futebol - isto é, de modo não democrático). Todavia… como não há solução sem política, não há saída fora da democracia e não há democracia sem democratas, devemos nos preparar para uma (longa) época sombria.
Não, não se trata apenas da ameaça da extrema-direita. O conceito de extrema-direita é inconsistente como categoria analítica. Se tomarmos como referência a democracia, revela-se de pronto a inconsistência da própria noção de "extremismo". Extremistas, no sentido estrito do termo, seriam os que não aceitam o sistema democrático e querem abolir suas regras (por exemplo, por meio de um golpe militar reacionário ou de uma insurreição popular revolucionária). Mas os que não violam abertamente as leis porque usam a democracia (sobretudo o regime eleitoral) contra a própria democracia - como fazem os populistas, ditos de direita ou de esquerda - não precisam ser extremistas para constituir um perigo para a democracia liberal.
Mesmo assim, existe extremismo de direita. Governantes populistas-autoritários (ou nacional-populistas), ditos de extrema-direita, são realmente um perigo para a democracia, mas só estão no governo de países com regimes autocráticos na Hungria, em El Salvador, na Turquia (e talvez na Índia). Há alguns casos em que os regimes que governam permanecem sendo democracias, como Itália, Argentina, Israel e Eslováquia (além dos EUA, mas Trump só vai assumir em 2025). Outros apontados como perigosos "fascistas" - como Ventura, Abascal, Wilders, Weidel e Chrupalla, Salvini, Farage, Le Pen, Purra - até agora não governam nenhum país. Bolsonaro e Duda já governaram democracias, mas não governam mais.
Mas aqui há um grande problema. A instrumentalização política que constrói uma "internacional fascista", de extrema-direita, como o (único ou principal) inimigo universal, para esconder dois outros perigos.
O primeiro perigo que estão escondendo (possivelmente, aqui sim, o principal) é a ascensão do eixo autocrático, o maior e mais poderoso já articulado no planeta em toda a história, juntando ditaduras de esquerda ("socialistas"), como as da China, da Coreia do Norte, do Vietnã, do Laos, de Cuba, da Venezuela, da Nicarágua (com o protagonismo da Rússia, que não pode ser encarada propriamente como de esquerda e de várias ditaduras islâmicas - como as do Irã e da Síria, idem).
O segundo perigo que estão escondendo são os regimes eleitorais não autoritários, mas também não liberais, parasitados por populismos de esquerda, que se alinham ao eixo autocrático (descrito acima), como os do México, de Honduras, da Bolívia, da Colômbia, do Brasil, da África do Sul e, talvez, da Indonésia (todos esses também apoiados pela Rússia).
Seria melhor partir de uma análise de quais são os governantes não liberais (do ponto de vista político) no mundo de hoje, começando com alguns exemplos (os mais eloquentes) como os representados no diagrama abaixo:
São apenas exemplos. No diagrama acima está faltando muita coisa, inclusive, na primeira coluna, Roberto Fico, da Eslováquia.
Pois bem. Os populistas-autoritários (identificados como de “extrema-direita”) meio que equivalem, em número, aos ditadores ditos "socialistas". Vejamos. Sete autocracias: Xi Jinping (China), Jong-un (Coreia do Norte), Minh Chính (Vietnam), Siphandone (Laos), Canel (Cuba), Maduro (Venezuela) e Ortega (Nicarágua). Putin (Rússia), mais uma autocracia, estimula, apoia ou se alinha a todos os campos autoritários ou não autoritários e não liberais ditos de direita ou de esquerda.
Isso para não falar dos ditadores islâmicos que estão no BRICS: Khamenei (Irã), Al Maktoum (Emirados Árabes Unidos) e bin Salman (Arábia Saudita, que não refugou o convite). E dos ditadores seculares que também estão no BRICS: Lukashenko (Belarus), Musevini (Uganda), Shinawatra (Tailândia), Mirziyayev (Uzbequistão), Smaylov (Cazaquistão), Al-Sissi (Egito), Ali (Etiópia), Larbaoui (Argélia) e Tinubu (Nigéria) - todos autocracias. Nenhum desses pode ser adequadamente classificado como extrema-direita ou como esquerda.
Claro que existem muito mais ditadores que (ainda) não estão no BRICS e que também não podem ser bem caracterizados como extrema-direita ou como esquerda. Exemplos de ditadores islâmicos: al-Assad (Síria), Azhundzada (Afeganistão), Al Thani (Catar), al-Houthi (Iémem), al-Burhan (Sudão), Al-Sabah (Kuwait), al-Dabaib (Líbia), Akhannouch (Marrocos), Al Said (Omã), Mohamud (Somália) e Al Hussein (Jordânia). Exemplos de ditadores seculares: Mayardit (Sudão do Sul), Sen (Camboja), Déby (Chade), Afewerki (Eritréia), Hlaing (Myanmar).
Parece pouco razoável imaginar que haverá qualquer consenso ou algum tipo de acordo pacífico (ou pacificante) entre os campos representados no diagrama acima e a coalizão das trinta e duas democracias liberais, ainda que duas delas (EUA e Itália) sejam (ou uma delas o será em breve) governadas por nacional-populistas. Ainda é preciso considerar as cerca de trinta democracias eleitorais (democracias formais, conquanto flaweds) não parasitadas por populismos. Só a realpolitik, o jogo (dito geopolítico) da guerra, o equilíbrio competitivo entre as nações, o acordo de mútua destruição (MAD), não serão capazes de aguentar ou sustentar por muito tempo a aparente atmosfera de paz mundial. Tanto é assim que não foi - do contrário não estaríamos em plena segunda grande guerra fria.
Aqui é preciso entender que a segunda guerra fria não é um repeteco da primeira (por exemplo, não é EUA x China no lugar de EUA x URSS), mas uma netwar, que não designa apenas, nem principalmente, uma guerra pela internet (ou digital), mas uma guerra que se instala no interior das sociedades (que são as verdadeiras redes sociais). Ou seja, a segunda guerra fria não é (ao contrário da primeira) o confronto entre blocos geograficamente demarcados, mas pervade tudo, se instalando dentro de cada país, dividindo as sociedades nacionais e nelas instalando uma polarização tóxica que extermina capital social e, com isso, retira as bases sociais que sustentam as democracias liberais.
Ou seja, o fato de não estarmos em guerra quente (uma terceira guerra mundial) não significa grande alívio do ponto de vista da democracia, porque o que autocratiza os regimes democráticos, o que destrói seus sistemas de freios e contrapesos, o que erode as bases sociais (ou dilapida capital social) sem as quais as democracias não podem funcionar bem e perdurar, é o ‘estado de guerra’.
E nada garante que tudo isso não desembocará numa guerra quente de âmbito mundial, ainda que essa guerra não precise ser necessariamente uma catástrofe nuclear em escala global capaz de exterminar a espécie humana ou a vida em sociedade tal como a conhecemos.
Mas guerra haverá. Porque já há.
Acho que Robert Fico, da Eslováquia, poderia se enquadrar no neopopulismo de esquerda, acho eu. Pois o partido dele, o SMER, é da esquerda russófila, e que tá aliada a extrema-direita eslovaca e russófila também (representada no parlamento eslovaco pelo partido SNS). E ainda falta incluir na coluna nacional-populista o sérvio Vucic (que também é russóflio).
Augusto, uma pergunta: o senhor crê que a organização criminosa Primeiro Comando da Capital - PCC, tem condições de parasitar ou destruir a democracia no Brasil, colocando o país em transição autocratizante, já que ela passou a apoiar campanhas eleitorais de candidatos do interesse da facção e investir na formação de juízes, advogados, promotores e outros do aparelho repressivo estatal? O senhor acha que o PCC, tal como o petismo e o bolsonarismo, está depositando seus ovos na carcaça podre de nosso sistema historicamente corrupto?