Há algo profundamente errado nas finanças públicas brasileiras!
Diogo Dutra, Inteligência Democrática (02/12/2024)
Uma transcrição, organizada por meio de IA, de uma fala de Eduardo Giannetti no Instituto de Estudos Avançados da USP em um evento dedicado a refletir sobre a necessidade do Pacto Federativo 2019.
Nas últimas semanas, o debate sobre finanças públicas voltou à tona, marcado por uma polarização ideológica entre visões ortodoxas e heterodoxas, impulsionada pelas recentes propostas do governo e do ministro Fernando Haddad. Essa discussão, embora acalorada, parece pouco produtiva, pois permanece focada em medidas pontuais e populistas que não alteram, e às vezes até agravam, a dinâmica estrutural do sistema econômico.
Uma alternativa construtiva seria direcionar nossos esforços para reformas que promovam mudanças reais, como a revisão do pacto federativo. Esse tema, que venho explorando há tempos, foi brilhantemente abordado por Eduardo Giannetti em uma fala no Instituto de Estudos Avançados da USP. Em vez de tentar simplificar ou reinterpretar suas palavras, decidi transcrever e organizar sua exposição, utilizando o auxílio de IA, tentando o máximo possível manter a essência e o contexto original de sua fala.
Além disso, destaco também o material “Pacto Federativo, Agenda 2030: Diretrizes para o aprimoramento do Federalismo Brasileiro”, elaborado pelo Instituto de Democracia e Sustentabilidade. Esse documento apresenta propostas concretas que poderiam consolidar um novo pacto federativo, essencial para equilibrar o orçamento público e melhorar os serviços prestados à população.
Convido a todos tanto a explorar a fala de Giannetti quanto este documento. Esse tipo de discussão é fundamental para superar o clichê da polarização entre esquerda e direita, promovendo soluções objetivas e práticas para os desafios das finanças públicas e dos serviços essenciais.
Segue abaixo a transcrição da fala de Eduardo Giannetti no Instituto de Estudos Avançados da USP:
Muito bom dia a todos. Gostaria de agradecer ao Instituto de Estudos Avançados por promover este debate em torno de um tema que considero realmente muito central: o Pacto Federativo. É um tema extremamente caro, entre outras razões, porque é transversal. Ele atravessa praticamente todos os temas relevantes para a cidadania, desde a democracia participativa até políticas públicas, problemas tributários, qualidade de vida e sustentabilidade. Além disso, é transversal no sentido ideológico, pois a discussão do pacto federativo não possui uma demarcação clara entre esquerda e direita. É um tema que deveria interessar a todos que desejam melhorar a qualidade do gasto público no Brasil e pensar em um Estado que realmente sirva à população, e não se sirva dela.
Dividirei minha fala em duas partes. Primeiro, abordarei os grandes números e o momento que estamos vivendo no Brasil em relação ao pacto federativo, incluindo um pouco de perspectiva histórica. Na segunda metade, pretendo discutir qual seria o caminho que imagino ser um bom direcionamento para superar o impasse nas relações entre os entes federativos no Brasil.
O Brasil, sendo um país complexo e continental, nunca resolveu muito bem a questão da centralização versus descentralização no âmbito estatal. Se analisarmos a história do Brasil desde a independência, veremos que há um constante movimento pendular. Há momentos de centralização, em que o governo central se torna todo-poderoso, e momentos em que se avança para um estado federativo, transferindo atribuições para estados e municípios.
Por exemplo, Dom Pedro I favoreceu a centralização no Primeiro Reinado. Já o período das regências foi marcado pela descentralização, quando o Brasil correu sério risco de fragmentação devido a movimentos autonomistas que quase separaram partes do país. Milagrosamente, isso não ocorreu, mas foi um momento de descentralização radical. No Segundo Império, houve novamente uma forte centralização. A República, por sua vez, foi criada em nome de um estado federativo, tanto que o Brasil passou a se chamar República Federativa do Brasil. A maior bandeira republicana foi exatamente atribuir poder e autonomia aos estados da federação.
Curiosamente, o Brasil é uma república federativa que surgiu por decisão do governo central, e não pela união de entes federativos que decidiram se juntar. Na República Velha, o federalismo deu lugar ao Estado Novo, que foi um período de centralização radical. Durante a ditadura, essa centralização chegou a níveis extremos, com o regime militar nomeando secretários de finanças estaduais em Brasília, demonstrando o grau de controle do governo central. Nesse período, houve uma repressão fiscal significativa contra os estados.
Com o fim do Estado Novo e a redemocratização, houve uma nova descentralização. Em 1988, o Brasil adotou um estado federativo e descentralizou as funções do Estado, transferindo atribuições como educação, saúde, segurança, saneamento e transportes para estados e municípios. Essa decisão foi correta. No entanto, a Constituição de 1988 não descentralizou a autoridade para tributar, que permaneceu fortemente concentrada na União. Hoje, dois terços da arrecadação total do Brasil estão com a União. Embora a Constituição obrigue a União a compartilhar os impostos tradicionais, abriu-se uma brecha para o crescimento das contribuições, que não são compartilhadas com os entes federativos. Isso perpetuou o gigantismo da União.
Se tudo tivesse ocorrido conforme o planejado, a partir de 1988 o Brasil deveria ter transitado de um modelo unitário para um estado federativo. Deveríamos ter visto uma diminuição do tamanho do governo central como contrapartida do aumento das atribuições e gastos dos entes federativos. No entanto, o que os números mostram é que, após 1988, os três níveis de governo começaram a crescer simultaneamente. Em vez de seguirmos os trilhos de um estado federativo, acabamos em um federalismo truncado, onde os recursos se concentram na União e, em seguida, são redistribuídos de formas muitas vezes tortuosas para que estados e municípios cumpram as atribuições conferidas pela Constituição de 1988.
Este federalismo truncado apresenta muitos problemas. Em primeiro lugar, ele elimina por completo uma noção que considero fundamental no Brasil: a cidadania tributária. Essa ideia pressupõe que o cidadão deveria ter o direito de saber quanto paga de sua renda em impostos, para onde o dinheiro vai e como ele retorna. Hoje, isso está praticamente anulado na vida do cidadão brasileiro. Ele não tem a menor noção de quanto paga em impostos, não sabe para onde o dinheiro vai e, muito menos, como ele retorna.
Em um genuíno estado federativo, a regra fundamental é que o dinheiro público deve ser gasto o mais próximo possível do local onde foi arrecadado. Esse é um princípio elementar e essencial para a consolidação de um estado federativo. No Brasil, porém, estamos muito distantes disso. Nosso sistema é extremamente complexo, com inúmeras transferências. Os recursos vão até Brasília e, posteriormente, retornam em forma de fundos de participação, programas de educação, saúde, entre outros.
Olhando para o futuro, o princípio fundamental deveria ser: o dinheiro público deve ser gasto o mais perto possível de onde foi arrecadado. Em um estado federativo, quais recursos deveriam ir para o governo central? Primeiro, existem funções que, mesmo em um estado federativo, só o governo central pode executar, como o Banco Central, a segurança externa, a diplomacia e órgãos reguladores. Essas atividades são indispensáveis em qualquer modelo de estado e, portanto, os recursos para financiá-las devem ser destinados ao governo central.
Além disso, em um país heterogêneo como o Brasil, é natural que os estados mais prósperos transfiram recursos para os menos favorecidos. A redistribuição inter-regional também deve passar por Brasília e, nesse aspecto, não proponho mudanças. O que não for para financiar atividades exclusivas do governo central ou redistribuição inter-regional não deveria ir para Brasília. Esses recursos devem permanecer próximos de onde foram arrecadados.
Isso implica em redesenhar e redefinir o sistema tributário brasileiro, corrigindo a assimetria existente entre as atribuições do setor público, que foram descentralizadas, e a autoridade para tributar, que permaneceu centralizada. É necessário transferir para os governos locais a autoridade para tributar, ao mesmo tempo em que se garante ao governo central os recursos necessários para financiar suas atividades essenciais e promover redistribuição inter-regional.
Hoje, temos um sistema em que Brasília decreta planos ambiciosos no papel, mas nada acontece na prática. Temos o Plano Nacional de Resíduos Sólidos, o Plano Nacional de Saneamento, o Plano Nacional de Educação. No papel, tudo parece encaminhado e resolvido, mas, na ponta, nada acontece. Os municípios não têm capacitação nem recursos para implementar esses planos.
Ademais, desde 1988, houve uma proliferação de municípios no Brasil. Hoje, temos 5.570 municípios, todos com câmaras de vereadores custeadas pelos contribuintes. Um estudo do economista Marcos Mendes mostra que, quanto menor o IDH do município, maior é o gasto com a câmara de vereadores, frequentemente superior aos investimentos em saneamento básico ou postos de saúde.
Dentro do modelo que proponho, em que se redistribui a autoridade para tributar e se compatibiliza com as funções do setor público, o município que não arrecada uma proporção mínima do que gasta não tem viabilidade financeira e não deveria existir. Esses municípios poderiam ser fundidos com outros maiores, liberando recursos para atividades-fim. Isso implicaria uma redução na excessiva criação de municípios que ocorreu no Brasil desde 1988.
Essas mudanças não devem ser feitas de maneira abrupta, mas precisam ser conduzidas de forma gradual e responsável. Tenho convicção de que, se o Brasil deseja ter um estado federativo, precisamos ter coragem para descentralizar. As questões relevantes para a vida do cidadão — saúde, educação, segurança, transporte e qualidade de vida, inclusive ambiental — acontecem no município. O modelo atual é um modelo de irresponsabilidade e desperdício.
A falta de transparência contribui para que o cidadão perca a noção da cidadania tributária. Acho que o tema da democracia também é muito caro ao pacto federativo. As novas tecnologias oferecem ao cidadão instrumentos para uma participação muito maior nos processos decisórios. Contudo, isso não acontecerá enquanto o poder genuíno não estiver no governo local. Essas tecnologias, junto com o anseio de participação que existe hoje e que ainda não encontra canais, serão muito melhor aproveitadas quando o lócus decisório estiver no governo local. Isso reforçará e radicalizará o processo democrático: menos Brasília, mais Brasil. Precisamos reduzir o tamanho do governo central, que se tornou completamente anacrônico em relação ao princípio esboçado em 1988 de um genuíno estado federativo. Devemos caminhar para um modelo que responda efetivamente às demandas sociais por políticas públicas que melhorem a qualidade de vida em áreas como educação, saneamento e transporte.
Gostaria de encerrar com uma colocação final, que talvez seja a mais relevante em relação ao problema fiscal brasileiro. Em 1988, a carga tributária bruta no Brasil era de 24% do PIB, um valor normal para um país de renda média. Isso significava que, de cada R$ 100 gerados pela economia, o governo arrecadava R$ 24 entre União, estados e municípios. Naquela época, o Estado investia 3% do PIB em infraestrutura, saneamento, habitação e outras atividades de investimento público. Desde 1988, o tamanho da carga tributária cresceu continuamente, sem exceção, em todos os governos. Hoje, revisada pelo IBGE, a carga tributária bruta gira em torno de 34% do PIB. Passamos de 24% para 34% do PIB em termos de arrecadação, mas não paramos por aí.
O Estado brasileiro gasta mais do que arrecada. Atualmente, temos um déficit nominal de 7% do PIB, ou seja, a diferença entre o que o setor público arrecada e o que gasta, considerando União, estados e municípios. Isso significa que cerca de 41% da renda nacional transita pelo setor público, um volume inacreditável de recursos drenados pelo Estado brasileiro. Entretanto, não vemos uma contrapartida que justifique esse tamanho do Estado.
Como explicar que 41% da renda nacional passem pelo setor público enquanto metade dos domicílios brasileiros não tem coleta de esgoto? Nossos indicadores de educação no PISA estão muito abaixo do esperado, mesmo gastando mais em educação pública, proporcionalmente ao PIB, do que nossos vizinhos na América Latina e até mais do que alguns países da OCDE. Gastamos muito, mas nossos resultados são decepcionantes. Na saúde e no transporte público, a situação não é diferente. Há algo profundamente errado nas finanças públicas brasileiras.
Seria esse um novo contrato social? Desde 1988, o Estado passou a atuar de maneira mais incisiva na redistribuição de renda? Gostaria de dizer que sim, mas não foi isso que aconteceu. O Bolsa Família, por exemplo, representa apenas 0,5% do PIB, impactando positivamente a vida de milhões de brasileiros, mas ainda é pouco diante do total arrecadado. Para onde vão os 41% do PIB?
Há duas despesas que, juntas, somam 20% do PIB: previdência e juros. Somos um país jovem que já gasta com previdência como se fosse um país europeu maduro. Atualmente, a previdência consome 13% do PIB, somando o INSS e os regimes próprios de servidores públicos. É uma extravagância sem precedentes. Os juros sobre a dívida pública representam 7% do PIB. Sobram, então, 21% do PIB nas mãos do Estado brasileiro.
Desse montante, 0,5% vai para o Bolsa Família, enquanto a capacidade de investimento do Estado caiu de 3% do PIB, em 1988, para uma média de 2,6% nos últimos cinco anos. Os recursos destinados a programas sociais e investimentos em habitação e saneamento são insuficientes. Não vemos uma contrapartida que justifique o tamanho da máquina pública. Acredito que boa parte desse problema decorre do pacto federativo.
Temos um governo central muito grande. A ideia de descentralização proposta em 1988 foi implementada apenas parcialmente, transferindo para os entes federativos atribuições do setor público. Acredito que o caminho para o Brasil hoje requer coragem para a descentralização. Essa é a solução que vislumbro, e estou concluindo com a possibilidade de detalhar posteriormente o que expus de forma mais genérica.
O caminho que proponho é menos Brasília e mais Brasil. Precisamos dar poder aos governos locais. Não estou falando em reduzir a carga tributária, nem em diminuir o tamanho do Estado, mas em transferir o genuíno poder decisório para onde as coisas realmente importantes para a vida do cidadão acontecem: o poder local.
Entre outros benefícios, isso reduzirá drasticamente o “butim” de práticas parasitárias que proliferam em Brasília, onde ocorre a apropriação de recursos públicos para fins que conhecemos bem, especialmente após os desdobramentos da Operação Lava Jato.
Portanto, acredito que “menos Brasília, mais Brasil” é crucial para fortalecer a democracia, melhorar a qualidade de vida, aumentar a eficiência das políticas públicas, ampliar a participação cidadã e restabelecer a cidadania tributária. Precisamos justificar o tamanho do Estado que temos, entregando à população aquilo que ela legitimamente demanda: dignidade humana, qualidade de vida e serviços públicos que reflitam o esforço feito pelo cidadão ao pagar impostos.
[A seguir Eduardo aprofunda, a partir de uma pergunta feita por Ricardo Young, as questões do orçamento público e suas vinculações]
Atualmente, 92% do orçamento da União está comprometido com gastos obrigatórios. Isso significa que o dinheiro público já está destinado antes mesmo de ser arrecadado, deixando uma margem de manobra mínima. Essa rigidez orçamentária, que também prevalece nos orçamentos dos entes federativos, dificulta a boa gestão e a qualidade na resposta às demandas da população.
Um estudo recente do Banco Mundial, intitulado Ajuste Justo, trouxe um dado impressionante: até 2030, o número de matrículas na rede pública de ensino no Brasil deve cair 25%, devido ao fenômeno demográfico. Faz sentido manter essa rigidez orçamentária, obrigando municípios a gastar da mesma forma em 2030, apesar dessa redução?
A autonomia dos entes federativos deve vir acompanhada de liberdade para a definição local da destinação dos gastos. Além disso, é fundamental que essa autonomia seja acompanhada de transparência e de mecanismos de acompanhamento. As novas tecnologias permitem que o cidadão saiba para onde está indo o dinheiro arrecadado e como ele está sendo utilizado. Isso não resolverá todos os problemas, mas é um passo importante para empoderar o cidadão e iniciar um processo de correção ao longo do tempo.
Hoje, o cidadão de um município pequeno não faz ideia de quanto paga em impostos, como esse dinheiro chega ao município ou como ele é gasto. Um dado impressionante é que 80% dos municípios brasileiros, com menos de 50 mil habitantes, praticamente não arrecadam nada localmente — nem mesmo IPTU. Esses municípios vivem de transferências constitucionais, criando um ambiente propício à má utilização e malversação de recursos públicos. Os cidadãos desses municípios pagam impostos indiretos em produtos como eletricidade, telefonia e remédios, mas não têm controle ou visibilidade sobre como esses recursos são utilizados. Por exemplo, 36% do preço médio de um remédio no Brasil corresponde a impostos, mas esse dinheiro vai para Brasília e retorna aos municípios por meio de fundos de participação, muitas vezes sendo mal utilizado.
Precisamos de coragem para transferir poder genuíno para os governos locais. Não será uma solução milagrosa, mas dará início a um processo democrático com maior potencial de correção. O ideal é que o cidadão saiba quanto da sua renda é destinado ao governo, para onde vai esse dinheiro e como ele retorna. Hoje, isso é inexistente.
Sou contra a ideia de vincular e tornar obrigatórios percentuais fixos de gastos, como “tantos por cento para a saúde”. Essa prática é uma falácia, pois o dinheiro não pode ser “carimbado” dessa forma. Um imposto supostamente destinado à saúde pode liberar outros recursos que seriam utilizados para essa área, desviando-os para outros fins.
Outra anomalia no pacto federativo brasileiro está no sistema de contribuições. Em 1988, as contribuições representavam cerca de 8% da arrecadação do governo federal. Hoje, somadas, elas já superam os impostos que são constitucionalmente partilhados com estados e municípios. O que era para ser exceção virou regra, pois as contribuições permitem ao governo central arrecadar sem necessidade de compartilhamento.
Esse modelo permitiu que o Estado brasileiro crescesse simultaneamente em todos os níveis de governo, sem que houvesse uma troca efetiva entre os modelos unitário e descentralizado. Em vez de desmontar o estado unitário do regime militar, foi criada uma nova camada sobre ele: os entes federativos com suas novas atribuições. Atualmente, 41% da renda nacional transita pelo setor público. É espantoso que, com esse tamanho de Estado, ainda tenhamos políticas públicas tão deficientes e metade dos domicílios brasileiros sem saneamento básico. Não dá!