Se espalha essa conversa de que Biden é um presidente (e um candidato) fraco. Ora, por que deveria ser forte? Uma democracia depende de um líder forte ou de uma sociedade forte?
Temos de rever nossos padrões. Eles ainda são, em boa parte, remanescências autocráticas. Por exemplo, essa história de presidente forte x presidente fraco. Se você morasse nos EUA preferiria um Trump forte ou um Trump fraco? Se você vivesse na Alemanha dos anos 20 do século passado preferiria um Hitler forte ou um Hitler fraco?
A democracia liberal prefere sempre presidentes fracos, com baixa gravitatem e mais vulneráveis ao controle da sociedade do que capazes de controlá-la e mesmerizá-la para conduzí-la como rebanho. Ou de se apresentar como um "homem poderoso" (Lu-Gal, em sumério, que foram os primeiros chefes das monarquias mesopotâmicas).
A democracia não é a capacidade de um governo se impor à sociedade e sim, pelo contrário, a possibilidade de a sociedade controlar o governo. Os melhores chefes de governo - das democracias mais avançadas do mundo - são aqueles dos quais, às vezes, nem sabemos direito o nome. Vamos fazer um teste? Responda de pronto, caro leitor: qual é o nome dos chefes de governo da Suíça, da Suécia, da Noruega, da Islândia, da Irlanda, da Holanda, da Finlândia, da Dinamarca? Dificilmente alguém acertará a metade, mas...
Um jogo ruim de futebol, muitas vezes, é aquele em que você não esquece o nome do juiz. Há, porém, quem prefira um Putin forte, se metendo em tudo, construindo inimigos e restringindo direitos políticos e liberdades civis dos seus cidadãos.
Isso acontece porque até hoje, mais de 2.500 anos depois da experiência originária do atenienses, muitas pessoas não entenderam que democracia não é propriamente sobre governo e sim sobre controlar o governo. Nas democracias os cidadãos vigiam o Estado. Nas ditaduras o Estado vigia os cidadãos (para mantê-los rebaixados como súditos). E isso dá um trabalho danado. Exige chefes fortes, guerreiros, monolíderes absolutos como Xi Jinping ou Kim Jong-un.
Há mais um motivo pelo qual ansiamos por presidentes ou chefes de governo fortes. É que a política foi degenerada, por autocratas e populistas, como continuação da guerra por outros meios. Aí precisa mesmo de um comandante, de um chefe militar cheio de energia para combater... quem mesmo? Ah! O inimigo!
Como foi dito acima, essa discussão sobre a alegada senilidade de Biden revela alguns padrões autocráticos da civilização patriarcal, hierárquica e guerreira, que remanesceram escondidos no subsolo das consciências. Um desses padrões é valorizar a força e desprezar a fraqueza. Mas se fosse assim, os elders que, com as enfermidades próprias da idade avançada, tiveram e ainda têm papel crucial em muitas sociedades, deveriam ser refugados, de vez que não têm mais o vigor físico dos jovens guerreiros.
Só nos regimes autoritários se exalta nos governantes habilidades próprias de um chefe de comando militar (que, mesmo assim, a maioria deles não tem): Mussolini e Kadafi são exemplos de supostos valentões que lideraram campanhas militares ou marchas nas ruas e estavam sempre prontos para abater o inimigo no campo de batalha ou em praça pública (e, ironicamente, acabaram abatidos assim). Nas democracias, se espera dos governantes que sejam coordenadores conscienciosos de equipes e não comandantes na ponta dos cascos para contender. Por que? Porque a democracia não é guerra e sim evitar a guerra.
Esse negócio da idade de Biden, além de ageísmo ou etarismo (discriminação e preconceito contra pessoas com base na sua idade), é apenas um golpe sujo de luta política (sim, foram os russos que começaram a espalhar isso, mais uma vez interferindo na eleição americana). No Brasil, aliás, o etarismo é considerado crime, conforme descrito no artigo 96 da Lei 10.741/2003.
Biden tem alguma doença que afeta o seu juízo? Ah! Mas ele esquece coisas e caminha cambaleante. E daí? Velhice tem seus achaques, mas não é doença. Alega-se que ele mostra sinais de declínio cognitivo. Honestamente não se pode sustentar tal alegação, que seria, em suma, uma diminuição relevante na capacidade de fazer conexões e reconhecer padrões. Desequilíbrio corporal, desorientação espacial e alheiamento temporário são outras coisas. A questão é se as habilidades e competências para presidir a República dependem disso. Até hoje não se viu uma decisão fundamental de Biden como presidente que tivesse sido afetada por isso. Pelo contrário, Biden foi fundamental na defesa da Ucrânia contra a invasão da ditadura russa. Biden foi fundamental no apoio crítico a Israel contra as investidas da teocracia iraniana e de seus braços terroristas. Biden está sendo fundamental no apoio a Taiwan diante das tentativas de invasão e anexação da ditadura chinesa. Em tudo que é realmente importante, seu papel foi fundamental.
Mas mesmo que Biden estivesse escondendo uma doença: Franklin Roosevelt disputou várias eleições e, inclusive, governou os EUA com uma doença grave (em parte do tempo preso a uma cadeira de rodas) que foi mantida em segredo da população (justamente para evitar o que se faz hoje com Biden). Ah! Mas Roosevelt liderou os EUA na guerra contra o Eixo. E daí? Nesse campo temos um exemplo ainda mais veemente: o de Churchill, que logo foi aposentado pelo eleitorado porque o protagonismo que exerceu em tempos de guerrra, sem o qual, talvez, o nazismo não tivesse sido derrotado, era excessivo para a democracia inglesa em tempos de política.
O essencial, porém, é o seguinte: você prefere um elder com visões democráticas ou um sujeito quatro anos mais novo com delírios autocráticos (como é o caso de Trump)? Com 81 anos, Biden é mais novo do que o Papa Francisco (com mais de 87 anos) que, aliás, está com debilidades e limitações muito maiores. Biden é mais novo que Biya, de Camarões (com 91). É mais novo do Abbas, da Autoridade Palestina (com quase 89). É mais novo do que Khamenei, teocrata do Irã (com 85). Isso para não falar de Mandela, que só se retirou da vida pública em 2004, com 86 anos - que será a idade de Biden quanto terminar seu segundo mandato e que é quase a mesma idade que Lula terá se for reeleito em 2026.
Não se discute aqui se Biden é o melhor candidato para impedir que Trump volte à presidência. Provavelmente não, por várias razões, mas não pelas calúnias de que é vítima. Com uma sociedade polarizada pela investida populista-autoritária de Trump, seria preferível um candidato novo, que empolgasse multidões. Mas é o que temos para hoje, pois não foi possível encontrar consensualmente outro candidato competitivo no campo democrático. É uma situação de fato. Só analfabetos democráticos, diante disso, dirão que já que não encontraram um candidato melhor, que se eleja Trump mesmo.
Conclusão. O voto de qualquer democrata (não só dos filiados e simpatizantes do Partido Democrata) deve ser contra Trump. Até porque Biden - no vigor da idade ou na fraqueza da velhice - nunca ameaçou a democracia (ao contrário de Trump). E é isso que importa.