Musk como pretexto e como isca

O fato de Musk ser um adversário da democracia - o que ele realmente é - não justifica transformá-lo no Emmanuel Goldstein do 1984 de Orwell (o Inimigo Público Número 1), tomando seu caráter torpe como pretexto para adotar medidas de exceção. A democracia é o tipo de regime que aceita coexistir com adversários da democracia, desde que não tentem derrubá-lo pela força. Até com Musk.

A campanha atual contra o X não tem a ver apenas com ordens judiciais não cumpridas por Musk. Basta ver como a militância do PT se engajou nessa campanha como uma luta ideológica.

Foram os próprios petistas que deram a maior bandeira ao comemorarem efusivamente o bloqueio (ou a suspensão: por enquanto dá na mesma) do X no Brasil. É como se eles tivessem revelando sua estratégia eleitoral, ao dizer:

"Nós temos a Globo News. E temos boa parte dos jornalistas da CNN e de outros canais de TV. Eles (os fascistas) tinham as mídias sociais, mas não têm mais o X. Com a regulamentação que vem por aí perderão também espaço em outras mídias. Vamos ver agora como vão dar o golpe”.

Entenda-se que o golpe agora, para o PT, é o fascismo ganhar as próximas eleições.

Como a gente sabe que Musk está sendo tomado como pretexto pelo lulopetismo para acirrar a polarização e turbinar uma luta político-ideológica no país?

Bem... em primeiro lugar as alegações dos militantes são sempre as mesmas e podem ser encontradas entre as sete sentenças (falsas) abaixo:

1 - Musk tem que respeitar as leis brasileiras e o que ele faz é uma afronta à nossa soberania.

Musk, de fato, não está respeitando as decisões de Alexandre e de seus pares no STF, mas eles não são as leis brasileiras. Não consta em nenhuma lei brasileira que se possa cassar perfis, adotando uma justiça preemptiva (como a do filme Minority Report). Pois não querem apenas punir um crime que foi cometido (removendo, por exemplo, um conteúdo ilegal), mas impedir que, no futuro, o dono desse perfil cometa um crime (ou seja, é um pré-crime).

2 - Musk está fazendo do Brasil um laboratório com o fito de aprimorar suas táticas de destruir a democracia para aplicar em outros lugares do mundo.

Isso é uma invenção meio conspiratória. Não há qualquer evidência de que Musk esteja fazendo ou pretenda fazer isso. O que ele está fazendo, ao se juntar ao naciona-populismo (dito de extrema-direita) e à campanha Trump é seguir o conselho de Steve Bannon: “Flood the zone with shit”.

3 - Não há problema em suspender o X no Brasil, existem outras mídias. O TikTok, aliás, foi bloqueado nos EUA que são a maior democracia do mundo. E o X está prestes a ser banido da União Europeia.

Há problema, sim, e grande. Significa cassar 22 milhões de pessoas que usavam a plataforma X para se informar, estudar, se divertir, ofertar produtos e serviços, fazer novos relacionamentos etc. - pessoas que nada têm a ver com a briga de Musk contra Alexandre. Os brasileiros que tiveram seu acesso cassado à plataforma não são parte em nenhum processo.

E há aqui uma mentira. O TikTok está respondendo uma acusação de espionagem para a China e de concorrência desleal. As medidas contra essa plataforma chinesa são consensuais entre Republicanos e Democratas. Mas continua funcionando nos Estados Unidos.

E outra mentira. A União Europeia está aprovando uma regulamentação das mídias sociais (coisa que, no Brasil, não fizemos ainda) e então o X terá de se adequar a isso. Mas é falso que esteja prestes a ser banido lá.

Na verdade, até o final da semana passada o X só estava bloqueado em autocracias: Rússia, China, Irã, Mianmar, Coreia do Norte, Turcomenistão e Venezuela (onde foi suspenso por dez dias e não se sabe bem se voltou). Agora também está suspenso no Brasil, por ordem do STF.

As VPNs também só estão banidas em autocracias: Rússia, China, Irã, Turcomenistão, Paquistão, Arábia Saudita, Turquia, Coreia do Norte, Egito, Índia, Cuba, Síria, Belarus, UAE, Oman, Uganda, Mianmar e Iraque. O Brasil quase entra nessa segunda lista infame, se o Alexandre não recuasse. E mesmo assim não recuou totalmente porque manteve a multa escorchante de 50 mil reais por dia para quem usar VPN para acessar o X (como se isso fosse crime).

4 - Musk acatou decisões na Índia e na Turquia e só não quer acatar no Brasil.

Ao ver de Musk, as decisões desses países autocráticos estavam de acordo com suas leis. Ele argumenta que as decisões de Alexandre de Moraes estão em desacordo - não com as leis do EUA, mas com as próprias leis brasileiras (que não autorizam a prática de censura prévia em decisões sigilosas e sem apontar crime algum).

5 - Se Musk estivesse de boa fé não teria problema em nomear um representante legal no Brasil.

Bem, a última representante do X no Brasil foi ameaçada de prisão e teve suas contas bancárias bloqueadas. Musk acha que um novo representante teria o mesmo destino.

6 - Decisões judiciais têm de ser cumpridas. No sistema de justiça brasileiro é possível recorrer das decisões.

Não há a quem recorrer, a não ser ao próprio Alexandre de Moraes e aos seus pares corporativos. Fazê-lo seria inútil.

7 - Musk está de olho nas reservas de lítio do Brasil.

Aqui vem a cantilena estatista contra a propriedade privada dos capitalistas que só querem explorar o “Sul Global”. Além disso, cheira à teoria da conspiração. O Brasil tem poucas reservas de lítio (cerca de 1% do total), incomparavelmente menor, por exemplo, do que as reservas do Chile, da Austrália e até da Argentina.

Ademais, o fato é que, mesmo tendo origem privada, o X virou um ativo público (uma utilidade pública), independentemente de seu dono ser o Arcanjo Miguel ou o Belzebu (ou o Elon Musk).

Tudo isso serve também como isca para atrair pessoas que, sem muita intimidade com a democracia, acham tais alegações razoáveis e são capturadas para aumentar a polarização.

Os militantes lulopetistas que emitem essas alegações sabem, no fundo, que elas são falsas e, mesmo assim, continuam replicando-as. Porque seu objetivo não é revelar qualquer verdade e sim atrair mais pessoas para lutar contra os fascistas, quer dizer, todos aqueles que não beijam a mão de Lula e que possam dar um “golpe” na democracia brasileira (na prática, como já foi dito anteriormente, isso significa hoje o seguinte: vencer as próximas eleições).

Há motivos para preocupação. O affair Alexandre-Musk e a campanha contra o X nos levam à antessala de uma regulamentação das mídias sociais que retire dos que se opõem ao governo (com ou sem razão, como os bolsonaristas; de forma democrática ou não, como Musk) os instrumentos necessários para interferir no debate público.

E a democracia, ao contrário do que acreditam Alexandre e seus pares corporativos do STF, requer o império da lei, sim, mas isso não significa o império das instituições encarregadas de aplicá-la ou interpretá-la. Há aqui um ponto fundamental que explica porque o regime político brasileiro não é uma democracia liberal (segundo o V-Dem, da Universidade de Gotemburgo) ou uma democracia plena (segundo a The Economist Intelligence Unit). Alexandre e seus pares não sabem explicar isso, porque sua concepção de democracia (como a teratológica noção de “democracia militante”) é pedestre. A essência da democracia não é o Estado ser capaz de controlar a sociedade, impondo a lei e a ordem para transformá-la em seu dominium e sim justamente o contrário: é a possibilidade da sociedade de controlar o Estado. Por isso não somos uma democracia liberal ou plena.

O bloqueio do X no Brasil foi um golpe na liberdade de expressão, não apenas dos bolsonaristas (quer dizer, dos tidos por fascistas) e sim de todos aqueles democratas que, rejeitando o bolsonarismo e refugando Elon Musk, também não se alinham ao governo Lula e ao PT.

No fim, faltou bom senso ao STF. Puniu pessoas que nada têm a ver com Musk, com a extrema-direita ou com o bolsonarismo. Acirrou a polarização tóxica porque aumentou o número de pessoas que não suportam mais o governo Lula e um judiciário alinhado. E isso não tem volta no curto prazo. É possível que vejamos os resultados disso tudo, adversos para o PT, nas próximas eleições de 2024 e 2026.