Notas sobre o nexo democracia-ambientalismo
Um laboratório interessante para a política, especialmente para a democracia como modo de vida
Rafael Eichemberger Ummus, Inteligência Democrática (16/07/2024)
Demorou, mas o tema entrou na moda (os dois). Uma pena, pois ainda de modo raso, e que nem pimenta: democracia e sustentabilidade são boas nos olhos dos outros. Quando é necessário alterar modos-de-vida para abrir mão de impulsos autocratizantes ou para reduzir níveis de consumo de energia e fluxos materiais, ninguém quer.
Sim, faço uma apologia à radicalização, em seu sentido etimológico. Em relação à democracia, trata-se de pautar todo nosso conjunto de relações, construções coletivas e gestão de conflitos a partir de uma perspectiva pluralista, não-dogmática, dialógica e pautada na disposição em ouvir, modificar-se e rejeitar hierarquias. Em relação ao ambientalismo, de modo curto e grosso, radicalizar significa consumir menos.
Mas antes de ir ao nexo, vamos às ressalvas. Embora ambientalismo, de modo estrito, se refira ao movimento social configurado em torno da problemática socioecológica ao longo das últimas décadas, aqui utilizo o termo de modo mais raso (!) e abrangente, significando o universo de respostas sociais e políticas a esta problemática.
Os advogados das hierarquias muitas vezes invocam o fator "eficiência" de governo como uma variável intermediária no processo: governos autocráticos com alta capacidade de implementação poderiam executar grandes obras infraestruturais (e. g., plantas de tratamento de esgotos, grandes mudanças na base energética). Porém, estas mudanças tendem a ser apenas cosméticas, o que ilude o observador desatento, e escondem efeitos ocultos pela complexidade das cadeias produtivas e do cômputo da real pegada ecológica dessas intervenções. Outra crítica comum (ex-ante) à capacidade de regimes democráticos responderem a problemas ambientais, é que a democracia é muito lenta e complicada diante da urgência dos problemas ambientais.
O que dizem os universitários? Em geral, as pesquisas apontam que países democráticos tem melhor desempenho ambiental, por exemplo em relação a indicadores como emissões de carbono e poluição da água. O maior pluralismo, ativismo da sociedade civil, instituições mais fortes, menor corrupção e maior confiança no processo eleitoral, tornam as sociedades democráticas mais abertas às demandas populares pela provisão de bens públicos, como os bens e serviços ecossistêmicos, e mais competentes no controle social dos governos.
Outro fator favorável às democracias são as inovações democráticas que se originam do ambientalismo. Como desdobramentos desses movimentos muitas vezes se expandiu expansão da participação da sociedade civil na governança ambiental e surgiram novas formas de movimentos sociais, em diversos níveis, em diálogos pluristakeholder congregando atores outrora excluídos, do qual decorreu a institucionalização de muitos direitos ambientais.
No Brasil, temos centenas de exemplos de iniciativas mais ou menos diversificadas e exitosas de gestão territorial protagonizadas por populações tradicionais ou indígenas, muitas vezes materializadas e amparadas institucionalmente como as Reservas Extrativistas, Acordos de Pesca e outros arranjos.
Globalmente, a temática ambiental estimulou o multilateralismo e a cooperação internacional, ainda que estes possam travestir interesses geopolíticos ocultos relacionados ao valor de dados eco-geoespaciais, interferência política ou o interesse em ativos ambientais dos países "pobres, subdesenvolvidos ou carentes".
Cabe lembrar também alguns vícios antidemocráticos do ambientalismo. Extremismos como ecofascismo, por um lado, ou um anarcoprimitivismo, por outro são exemplos. A simulação ou insuficiência de participação/inclusão, especialmente no caso das populações originárias/locais ou periféricas nos espaços chamados participativos, é outro.
E como é comum acontecer em articulações coletivas, o ambientalismo não escapa da reprodução das patologias organizacionais na execução de projetos ou advocacies visíveis também em relação às respostas sociais à desigualdade econômica, crises e outras mazelas. As organizações ambientalistas muitas vezes reproduzem outros vícios relacionados a efeitos nocivos da intervenção externa sobre sistemas locais, como o desenvolvimentismo, economicismo, paternalismo, proselitismo, tecnicismo e erosão de capital social local.
Minha visão pessoal sobre o nexo democracia-ambiente é que a questão ambiental/sustentabilidade é um campo e laboratório interessante para a política e especialmente a democracia como modo de vida, em que cabe complementar o sentido da expressão modo-de-vida, usualmente associada a " way of life", com o sentido "livelihood", associado às práticas culturais de relacionamento com componentes biofísicos, sociais e culturais dos socioecossistemas:"democracy as livelihood" e sustentabilidade pela convivência.
Acredito que há um manancial de potenciais inovações políticas e culturais que surgiram e surgem em iniciativas para a gestão colaborativa de recursos naturais em regime de uso comum, sejam indígenas, tradicionais ou periféricos, em contextos rurais ou urbanos. O antídoto para as patologias continua sendo o exame profundo do significado e implicações de um modo-de-vida democrático, e a disposição em examinar as raízes profundas do que muitas vezes nos é apresentado como vistosas flores.