O Brasil está em processo de autocratização?
O regime político brasileiro está em processo de autocratização?
Há evidências para afirmar que estamos num processo de autocratização do nosso regime político. Claro que tal avaliação deve ser corroborada por outras análises independentes antes de um juízo definitivo. Neste artigo apresento, de modo sucinto, a minha análise.
Todo processo de autocratização é operado como um combate a um inimigo perigoso, real ou imaginário. Seja o combate ao comunismo e à esquerda revolucionária, ao golpismo e à extrema-direita reacionária (ou fascista), à corrupção, aos imigrantes legais ou ilegais, à criminalidade ou às drogas, à alguma ameaça externa que viola ou pode violar a soberania do país et coetera.
Processos de autocratização, portanto, não ocorrem apenas pela atuação de forças políticas que pretendem dar um golpe de Estado (ou autogolpe, se estiveram no governo) à moda antiga - por exemplo, um golpe militar. Esses processos também podem ser desencadeados por invasão estrangeira, tanto por quem é invadido, como ocorreu na primeira democracia ateniense (com a invasão da Ática por Felipe e Alexandre em 322 a.C.) ou na invasão da Ucrânia (com a invasão militar da ditadura russa de Putin em 2022), tanto por quem invade, como está ocorrendo com Israel após o governo Netanyahu decidir invadir Gaza (em 2023). E, como é muito mais frequente no século 21, os processos de autocratização podem ocorrer por erosão democrática, mesmo sem violência e, inclusive, sem violar abertamente as leis ou rasgar as constituições.
Os principais adversários da democracia hoje não são mais os fascismos e o comunismo e sim os populismos, tanto o nacional-populismo ou populismo-autoritário dito de direita (ou extrema-direita), quanto o neopopulismo dito de esquerda. Esses dois populismos parasitam os regimes políticos, em geral, os regimes eleitorais. Não são iguais. O populismo-autoritário é antissistema e admite qualquer solução para abolir a democracia ou substituí-la por um regime autoritário (uma autocracia eleitoral ou fechada). É um parasita que, no final, mata o hospedeiro. O neopopulismo não quer destruir as instituições da democracia e sim fazer maioria em seu interior para conquistá-las e colocá-las a serviço da sua estratégia de conquista de hegemonia sobre a sociedade a partir do Estado controlado pelo partido para se delongar no governo por tempo suficiente com o fito de alterar, “por dentro”, o DNA da democracia, substituindo-a por cidadania ofertada para o povo pelo líder populista na chefia do Estado ou do governo. O neopopulismo é um parasita que paralisa o hospedeiro, quer dizer, enfreia o processo de democratização impedindo que a democracia eleitoral alcance o status de democracia liberal ou fazendo uma democracia liberal decair para uma democracia apenas eleitoral.
Os populismos do século 21 não são mais caracterizados por demagogia, assistencialismo, clientelismo e irresponsabilidade fiscal. Embora essas características dos populismos dos séculos passados persistam, o que define agora o populismo - seja dito de esquerda ou de direita - não é a presença de um líder demagógico assistencialista, clientelista e fiscalmente irresponsável, ainda que o populismo opere sempre por meio de lideranças com alta gravitatem que apresentam tais características. O que caracteriza o populismo é o seguinte: a) a divisão da sociedade em uma única clivagem: povo versus elite; b) o encorajamento de uma polarização política a partir dessa divisão: a política praticada como guerra do “nós” contra “eles”; e, mais propriamente no caso do neopopulismo (ou populismo de esquerda), c) a ideia (majoritarista) de que é preciso fazer maioria em todo lugar, acumulando forças para conquistar hegemonia sobre a sociedade a partir do Estado aparelhado pelo partido (ou de um grupo ideológico que faz as vezes de partido).
O regime político brasileiro, parasitado por populismos de esquerda (no governo) e direita (na oposição), está num processo de autocratização? Há uma dificuldade de responder essa pergunta, inclusive porque analistas acadêmicos, como Levitsky, por exemplo, coautor de Como as democracias morrem, ainda acham que não existe populismo de esquerda (só de extrema-direita). E eles dizem que a única ou principal ameaça à democracia é uma “internacional fascista” (Trump, Orban, Erdogan, Bukele, Milei, Bolsonaro, Le Pen, Salvini e Meloni, Weidel, Abascal, Ventura etc.) não mencionando quase nunca o maior eixo autocrático que já se formou na história universal (Putin, Lukashenko, Xi Jinping, Kim Jong-un, Khamenei e o Corpo da Guarda da Revolução Islâmica coordenando uma dezena de organizações terroristas, Phạm Minh Chính, Siphandone, Lourenço, Canel, Maduro, Ortega etc.). Ou seja, o establishment acadêmico, por algum motivo, não está sabendo reconhecer os padrões autocráticos que estão sempre presentes em qualquer processo de autocratização.
No caso brasileiro atual, como vimos, dois populismos parasitam o regime eleitoral: o lulopetismo no governo e o bolsonarismo na oposição. Considerando isso, para saber se estamos ou não num processo de autocratização basta começar com três perguntas:
1) A que forças políticas está se alinhando o populismo lulopetista no governo?
2) A que forças políticas está se alinhando o populismo bolsonarista na oposição?
3) Por que o regime político brasileiro não é reconhecido (pelos mais reconhecidos institutos que monitoram a democracia no mundo, como o V-Dem e a The Economist Intelligence Unit) como uma democracia liberal ou plena?
Parece evidente que há uma tendência de alinhamento político (não apenas de estabelecimento de relações diplomáticas e comerciais) do atual governo brasileiro aos governos (e aos regimes políticos) da Rússia, da China, do Irã, de Angola, de Cuba, da Venezuela e da Nicarágua. E também aos governos e regimes eleitorais não-autoritários, mas também não-liberais, parasitados pelo mesmo tipo de populismo que o caracteriza (o neopopulismo), como os do México, de Honduras, da Colômbia e da Bolívia (que agora deixará de ser neopopulista, com a recente derrota eleitoral do partido MAS - Movimento Ao Socialismo de Evo Morales e Luis Arce).
Igualmente parece evidente que há uma tendência de alinhamento político das forças representadas pelo governo anterior (de Bolsonaro) aos governos (e aos regimes políticos) da Hungria, da Turquia, dos EUA, de El Salvador, da Argentina, da Itália. E também às lideranças nacional-populistas que estão na oposição na França (com Le Pen), na Alemanha (com Weidel), na Espanha (com Abascal), em Portugal (com Ventura).
Por último, parece evidente que o regime político brasileiro não é uma democracia liberal (segundo a classificação do V-Dem, o Brasil é uma democracia apenas eleitoral, não-liberal) ou plena (segundo a classificação da The Economist Intelligence Unit, o regime brasileiro é uma democracia defeituosa). No conjunto das democracias liberais ou plenas, em 2025, segundo esses dois institutos, estão os seguintes países: África do Sul (provavelmente incluída por erro pelo V-Dem), Alemanha, Austrália, Áustria, Barbados, Bélgica, Canadá, Chequia, Chile, Costa Rica, Dinamarca, Espanha, Estônia, EUA, Finlândia, França, Grécia, Holanda, Irlanda, Islândia, Itália, Jamaica, Japão, Letônia, Luxemburgo, Maurício, Noruega, Nova Zelândia, Portugal, Reino Unido, Seicheles, Suécia, Suíça, Taiwan e Uruguai. Ou seja, o Brasil e seus aliados preferenciais estão fora da lista.
Na classificação abaixo, que venho adotando, o Brasil está na posição 3.
O Brasil não é uma democracia liberal (ainda que nossa Constituição de 1988 tivesse desenhado os contornos de um regime liberal). Mas o Brasil não satisfaz os dez critérios (mais ou menos consensuais entre os teóricos liberais da democracia) para ser considerado uma democracia liberal ou plena:
1 - Liberdade de associação, liberdade de expressão e liberdade de imprensa (existência de fontes alternativas de informação).
2 - Proteção dos direitos individuais e das minorias contra a tirania do Estado e a tirania da maioria (recusa ao majoritarismo e ao hegemonismo).
3 - Eleições limpas e periódicas, sufrágio universal, governos e parlamentos eleitos.
4 - Rotatividade ou alternância no governo (não apenas de pessoas, mas também de partidos ou forças políticas).
5 - Cultura política pluralista, oposições políticas democráticas reconhecidas e valorizadas como players legítimos e fundamentais para o bom funcionamento do regime.
6 - Publicidade ou transparência nos atos do governo (capaz de ensejar uma efetiva accountability).
7 - Instituições estáveis, equilíbrio entre os poderes e sistemas atuantes e efetivos de freios e contrapesos.
8 - Império da lei e judiciário independente (e autocontido em suas atribuições).
9 - Forças armadas subordinadas ao poder civil.
10 – A sociedade controla o governo e não o contrário (a qualidade da democracia é medida pelos limites e condicionamentos impostos pela sociedade às instituições do Estado - o que pressupõe recusa ao estatismo).
Fica claro que a força política hegemônica no governo (o PT) viola a maioria dos critérios acima. Vejamos.
1 - Liberdade de associação, liberdade de expressão e liberdade de imprensa (existência de fontes alternativas de informação).
O PT defende, historicamente, o ‘controle social da mídia’ (profissional ou comercial), e agora quer impor uma regulamentação autoritária das mídias sociais, o que afeta as liberdades de expressão e de imprensa.
2 - Proteção dos direitos individuais e das minorias contra a tirania do Estado e a tirania da maioria (recusa ao majoritarismo e ao hegemonismo).
O PT é majoritarista e hegemonista. Confunde democracia com soberania popular e interpreta soberania popular como conquista da maioria pelo partido que representa verdadeiramente o povo (ou seja, o próprio PT). Acha que a democracia é a prevalência da vontade da maioria, esquecendo que a democracia não é o regime da maioria e sim das múltiplas minorias. Trabalha para conquistar hegemonia em todas as instituições, do Estado e da sociedade, buscando fazer maioria em seu interior para colocá-las a serviço do seu projeto de poder.
3 - Eleições limpas e periódicas, sufrágio universal, governos e parlamentos eleitos.
4 - Rotatividade ou alternância no governo (não apenas de pessoas, mas também de partidos ou forças políticas).
O PT ama de paixão eleições, mas não aceita a rotatividade ou alternância democrática. As eleições, para o PT, não fazem parte do metabolismo normal dos regimes democráticos, mas são um meio (instrumental) para alcançar e reter o poder em suas mãos indefinidamente.
5 - Cultura política pluralista, oposições políticas democráticas reconhecidas e valorizadas como players legítimos e fundamentais para o bom funcionamento do regime.
O PT deslegitima as oposições democráticas e, portanto, não reconhece o seu papel para o bom funcionamento da democracia. Qualquer força política que não estiver subordinada ao PT será olhada por seus dirigentes e militantes com desconfiança e, se fizer oposição ao seu governo, passará a ser classificadas como inimiga.
6 - Publicidade ou transparência nos atos do governo (capaz de ensejar uma efetiva accountability).
O PT nem sabe bem o que é isso. E, se soubesse, não concordaria. Aliás, o governo do PT adotou sigilo de 100 anos, repetindo o que fez Bolsonaro (depois de criticá-lo duramente por isso).
7 - Instituições estáveis, equilíbrio entre os poderes e sistemas atuantes e efetivos de freios e contrapesos.
O PT não acredita em equilíbrio entre os poderes. Prefere um presidencialismo imperial, que subordina a si todos os demais poderes (a não ser, agora, que perdeu maioria no parlamento e então quer bypassar o legislativo com a ajuda do STF).
8 - Império da lei e judiciário independente (e autocontido em suas atribuições).
O PT só acredita em império da lei se for a seu favor e, quando está no governo, prefere que o judiciário exorbite em suas funções para favorecê-lo.
9 - Forças armadas subordinadas ao poder civil.
Sim, mas só enquanto ele (o PT) não tem o controle das forças armadas (como acontece nas ditaduras amigas de Cuba, Venezuela, Nicarágua e Angola).
10 – A sociedade controla o governo e não o contrário (a qualidade da democracia é medida pelos limites e condicionamentos impostos pela sociedade às instituições do Estado - o que pressupõe uma recusa ao estatismo).
O PT é estatista. Acha que cabe ao governo popular controlar e comandar a sociedade, inclusive a economia. Por isso não aceita a independência do Banco Central e das Agências Reguladoras e tenta burlar a lei das estatais para nomear para suas diretorias seus militantes ou aliados políticos.
Recordando então. Segundo a classificação do V-Dem (da Universidade de Gotemburgo) o regime político brasileiro, como vimos, não é uma Liberal Democracy (democracia liberal), mas apenas uma Electoral Democracy (democracia eleitoral).
O Brasil também não é uma democracia plena. Segundo a classificação da The Economist Intelligence Unit não é uma Full Democracy (democracia plena), mas uma Flawed Democracy (democracia defeituosa).
Tomando como base os critérios elencados pelos pesquisadores do V-Dem - Anna Lührmann, Marcus Tannenberg e Staffan Lindberg (2018), no seu importante artigo Regimes of the world (ROW) - é possível mostrar por que somos uma democracia eleitoral:
a) Há eleições nacionais e elas são multipartidárias: a concorrência entre os partidos não é restringida em grau significativo.
b) Nossas eleições nacionais são razoavelmente limpas, livres e justas: há irregularidades pontuais, mas as eleições não são prejududicadas por fraudes sistemáticas e as irregularidades não afetam o resultado eleitoral (para o executivo e o legislativo).
c) Os governantes têm, minimamente, de ser responsivos aos cidadãos.
d) As organizações políticas e da sociedade civil podem operar livremente.
e) Entre as eleições há liberdade de expressão e uma mídia independente do governo pode apresentar visões alternativas sobre questões de relevância política.
Todavia, não somos uma democracia liberal porque:
a) Não há uma cultura política que valoriza a pluralidade política: as oposições democráticas não são reconhecidas como players legítimos e fundamentais para o bom funcionamento do regime.
b) A visão predominante do poder político é excessivamente “positiva”: os limites e condicionamentos impostos pela sociedade às instituições do Estado são insuficientes. Na visão predominante das forças políticas majoritárias, a qualidade da democracia não se verifica pela medida em que a sociedade controla o governo (que seria compatível com uma visão liberal, “negativa”, do poder político) e sim, frequentemente, dá-se o contrário. Como consequência, a sociedade não controla o governo em grau satisfatório: o governo atua para controlar a sociedade e conquistar hegemonia sobre ela a partir da sua visão.
c) Há proteções aos direitos individuais e das minorias contra a tirania do Estado, mas não há proteções suficientes contra a tirania da maioria: em outras palavras, da parte das forças políticas dominantes, há uma confusão entre democracia e majoritarismo (democracia como prevalência da vontade da maioria e não como regime de múltiplas minorias políticas); ou não há uma recusa enfática ao majoritarismo e ao hegemonismo.
d) As liberdades civis são constitucionalmente protegidas, há forte domínio da lei, mas o judiciário, conquanto seja, em boa medida, independente, não é constrangido de modo efetivo pelos freios e contrapesos institucionais, nem autocontido em suas atribuições.
e) Há forte polarização introduzida por populismos que parasitam o regime democrático: não há uma recusa clara da prática da política como continuação da guerra por outros meios (”nós contra eles”) que transforma adversários em inimigos. As forças políticas dominantes (no governo e na oposição) não acham que seja normal que a sociedade esteja dividida entre muitas - e às vezes transversais - clivagens: pelo contrário, acreditam que a sociedade está dividida por uma única clivagem separando a vasta maioria (o povo) do “establishment” (as elites). Em consequência, as forças políticas dominantes não acham que a melhor maneira de lidar com essas clivagens seja por meio de um debate aberto e livre, sob uma cultura política que valoriza a moderação e a busca do consenso. Contra isso, encorajam a polarização (povo x elites), acreditando que os representantes do povo são os atores legítimos (ou mais legítimos) e que eles devem buscar suplantar os representantes das elites, fazendo maioria em todo lugar onde isso for possível (majoritarismo).
f) As minorias sociais são protegidas e valorizadas pelo governo, mas as minorias políticas (consideradas antipopulares) não são bem toleradas e as forças políticas dominantes acham que essas minorias devem ser deslegitimadas quando impedem a realização das políticas populares.
g) Não há suficiente abertura para a interação com a sociedade (nem mecanismos institucionais capazes de viabilizar a influência dos cidadãos na forma como atua o governo).
Resumindo. O regime político brasileiro é, sim, uma democracia. Mas uma democracia (apenas) eleitoral, uma democracia defeituosa e está longe, bem longe, de ser uma democracia liberal ou uma democracia plena.
Tudo que não é democracia (liberal ou eleitoral) é autocracia (eleitoral ou não-eleitoral ou fechada). O Brasil não é uma autocracia. Mas enquanto estiver parasitado por populismos será um regime eleitoral em transição autocratizante (categoria 3, no diagrama acima), correndo o risco de se converter em um regime eleitoral autoritário (ainda que a longo prazo, ressalvadas as surpresas que podem vir no contexto da segunda grande guerra fria em que já estamos).
Tudo isso é importante porque, caso fique mais inequívoco de que estamos em um processo de autocratização, isso deve mudar o comportamento de uma oposição democrática.




