Todo esse coro sobre o evento, dito histórico, que vamos assistir a partir de hoje - a condenação pelo STF de hierarcas militares (um almirante e três generais de quatro estrelas, além do ex-presidente das República e seus comparsas mais próximos) por tentativa de golpe de Estado - traz escondido o germe de uma enganação.
Qual é a enganação? A de que atentados à democracia são apenas os de golpe de Estado (à moda antiga, com insubordinação do alto oficialato, movimentos nos quartéis, tropas marchando e tanques nas ruas).
Sim, no Brasil (de maneira amadora e mal-sucedida) e em Myanmar (com sucesso) ainda se tenta isso. Mas a imensa maioria de processos de autocratização da democracia no século 21 não ocorre por meio de golpe militar e sim por erosão continuada. A democracia é derruída tanto pelo golpismo rude (como tentaram os bolsonaristas), quando pelo hegemonismo mais sofisticado (como continua tentando o lulopetismo).
Uma análise do V-Dem, com dados originais cobrindo todos os episódios de autocratização que afetaram as democracias de 1900 a 2017, revela que golpes militares, autogolpes e invasão estrangeira não são mais os modos de abolir a democracia. Como se pode ver no diagrama abaixo, a imensa maioria desses processos de autocratização ocorre por erosão democrática, na maioria das vezes lentamente, sem ruptura violenta e sem rasgar as Constituições.
Os hegemonistas não querem dar golpe de Estado (à moda antiga), nem querem destruir as instituições democráticas e sim ocupá-las e fazer maioria em seu interior para colocá-las a serviço do seu projeto de poder. São antipluralistas e iliberais. Seu propósito é conquistar hegemonia sobre a sociedade a partir do Estado controlado pelo partido para se delongar indefinidamente no governo (desafiando o princípio da rotatividade ou alternância democrática - que não toleram).
De sorte que (na verdade, por azar), os hegemonistas (populistas de esquerda) que se opõem aos golpistas (populistas de direita) podem se apresentar falsamente como salvadores da democracia, quando não são democratas de verdade: se fossem, não apoiariam o ditador Putin, não babariam diante do poder autocrático e centralizador de Xi Jinping, não defenderiam a teocracia do Irã, enfim não se alinhariam ao eixo autocrático (via BRICS e Sul Global) contra as democracias liberais. O quadro abaixo é um resumo do comportamento dos populistas de esquerda:
E o anti-americanismo dos populistas de esquerda não tem a ver com o governo nacional-populista autoritário de Donald Trump, que agora ataca o Brasil: já se comportavam assim quando os EUA eram governados pelos democratas Clinton, Obama e Biden.
Por tudo isso, me perdoem: não posso entrar no coro dos "salvadores da democracia".
Nem eu posso.