Há exatos 350 anos. Spinoza já estava levando as primeiras pedradas por ter - entre outras heresias - publicado o Tratado Teológico-Político (em 1670). Os liberais modernos ainda não descobriram que, no capítulo 20 do Tratado, Spinoza escreveu (20 anos antes de Locke) que o sentido da política não é a ordem e sim a liberdade, recuperando assim o liberalismo originário dos democratas atenienses. Imagem: óleo sobre tela de Samuel Hirszenberg (1907), Excommunicated Spinoza.
Quando digo que sou liberal muitas pessoas não entendem. Por ignorância ou má-fé algumas concluem que sou neoliberal, seguidor de alguma doutrina do liberalismo-econômico; ou seja, que defendo redução do Estado, privatizações, novas leis para favorecer os ricos e não estou nem aí para os pobres.
Outras, mais ilustradas, mas que ainda pensam com categorias do século 20, acham que não basta se dizer liberal se não se colocar as palavrinhas mágicas: "social" ou "progressista" ou mesmo "de esquerda". Então eu teria que declarar que sou um social-liberal, um social-democrata ou um socialista democrático - do contrário serei um insensível capitalista, explorador do povo (e, por extensão, um aliado do imperialismo norte-americano ou do neocolonialismo europeu).
Quando usam a palavra 'social' em geral as pessoas não têm noção do que estão falando, não sabem que social não tem a ver com pobre, com povo ou com qualquer tipo de coletivismo: social não designa uma coleção de indivíduos e sim o que acontece entre eles para que se tornem pessoas.
E não entendem que quando digo que sou liberal, já estou dizendo que sou um democrata radical. Porque não sabem mesmo que a raiz política do termo liberal é tomar a liberdade (e não a ordem) como sentido da política. Pensam que o liberalismo é uma doutrina que começou com Locke no século 17, mas nem desconfiam que, vinte anos antes, Spinoza já havia recuperado esse sentido originário da palavra liberal que caracterizava a posição dos democratas (radicais) atenienses do século 5 a.C. fornecendo a base teórica para uma segunda invenção da democracia.
Para encurtar a conversa e para todos os efeitos práticos, quando digo que sou liberal estou dizendo que não sou populista, que não sou antipluralista e que não sou estatista. Mas não ser estatista, não ter uma visão estadocêntrica do mundo, não significa ter uma visão mercadocêntrica. Os que acham isso pensam que a sociedade (ou a comunidade) não existe, não é uma forma autônoma de agenciamento, ao lado do Estado e do mercado.
A conversa sobre isso é longa e difícil, não porque as categorias do pensamento utilizadas seriam impenetráveis, abstrusas ou porque os argumentos seriam por demais complexos e sim porque o pessoal tem dificuldade mesmo de compreensão.
Então, num esforço de me fazer compreender, vou reeditar - e reproduzir abaixo - um pequeno artigo, publicado em 13 de outubro de 2021, intitulado O principal fundamento do liberalismo democrático (que hoje está com pouco mais de 8 mil views no site Dagobah).
O principal fundamento do liberalismo democrático
Para os democratas o sentido da política é a liberdade, não a ordem. Isso é o mais duro de aceitar pelos i-liberais, digam-se de esquerda ou de direita.
A esquerda ainda confunde o conceito de liberal (no sentido político do termo) com o conceito de neoliberal (ou com alguma vertente do liberalismo-econômico). Na verdade, não é uma confusão. É uma rejeição à ideia de que o fim da política é a liberdade e não a ordem mais justa.
A direita – na verdade, a extrema-direita (o nacional-populismo ou o populismo-autoritário), que é a direita realmente existente com relevância política na atualidade – também confunde o conceito de liberal (sempre no sentido político do termo) com alguma tolice economicista contida nas doutrinas do liberalismo-econômico. É igualmente uma rejeição à ideia de que o fim da política é a liberdade. Para ela é a ordem e ponto. Nem precisa ser uma ordem mais justa – aliás, é melhor que não seja, que seja alguma ordem divina ou natural, que recupere a velha e boa hierarquia social diante da qual todos devem se ajoelhar.
Quando nós, os democratas liberais, falamos de liberalismo político, não estamos falando apenas de Locke, Montesquieu, Tocqueville, Constant, Mill – ou seja, do que se convencionou chamar de liberalismo moderno. Estamos falando, antes, de Clístenes, Efialtes, Péricles, Aspásia, Protágoras e dos sofistas, para os quais o fim da política era a liberdade.
Assumir que o sentido da política é a liberdade desconcerta os que tomam a política como luta para instalar uma ordem mais justa. Ainda que os democratas tenham um conceito (ético-político) do que é bom, para eles isso não significa uma boa ordem imaginada (no futuro) e sim tudo que (aqui-e-agora) nos faz mais livres. Assim, os democratas não precisam ter um plano de reformar o mundo visando alcançar uma boa ordem futura.
Claro que é desejável uma ordem mais justa e um mundo menos desigual. Mas a igualdade não pode ser precondição para a liberdade. Do contrário, isso só seria alcançado num reino da abundância (onde não haveria desigualdade sócio-econômica pelo simples motivo de que não haveria escassez). Ora, se o reino da liberdade coincidir necessariamente com o da abundância, a liberdade vira um futurível. E liberdade que só se alcança amanhã é a negação da liberdade hoje. Pessoas não-livres não podem caminhar para um futuro de liberdade.
Se a liberdade só pudesse existir num mundo igualitário, a democracia não teria sido inventada pela primeira vez numa sociedade com escravos. E o que os modernos chamaram de democracia não poderia existir numa sociedade (capitalista) com exploradores e explorados.
Para o conceito democrático original (que dá base ao liberalismo antigo), a liberdade depende da forma como as pessoas interagem (“e nada mais”, dizia Hannah Arendt). Isso significa que não se trata apenas de libertação da opressão de outrem e sim que a minha liberdade começa onde começa (e não onde termina) a do outro.
Mas a liberdade como sentido da política não garante que, uma vez mais livres, as pessoas vão lutar para instaurar uma nova ordem, imaginada como mais justa. Elas podem querer ser livres, como diz o poeta (Manoel de Barros), para não ter rumo. Podem ser livres para não ter que lutar por nada. Não pode?
Por isso, talvez, a democracia não seja uma boa alternativa para quem quer trilhar um caminho para salvar o mundo num futuro idílico. Ou porque – sendo ela mais lírica do que épica – para quem quer arregimentar as massas para lutar, lutar, lutar para trazer os céus à terra.
O que se diz aqui, em síntese, é que a democracia – felizmente – não é uma utopia. As utopias, como se sabe, são distopias (algumas, como a platônica, são retropias). Observem. As distopias mais tenebrosas sempre colocam como objetivo final a felicidade. Algumas até colocam a igualdade. Mas (quase) nenhuma fala da liberdade. A não ser aquelas (como a marxista) que dizem que a verdadeira liberdade só poderá ser alcançada no reino da abundância (e, portanto, da igualdade).
Repetindo. O sentido da política democrática não é a igualdade e sim a liberdade. A igualdade é a condição da política, pois a democracia só poderia nascer da interação entre iguais (ou seja, em circunstâncias em que qualquer um poderia igualmente interagir). Estamos falando da igualdade política, não necessariamente da igualdade socio-econômica, ainda que uma desigualdade sócio-econômica muito acentuada entre iguais políticos possa leva à desliberdade, tornando-os desiguais políticos. Mas não é próprio da democracia esperar uma igualdade sócio-econômica total para poder experimentar a interação política em condições de igualdade (política). Ocorre que se não tenho liberdade agora, nunca terei liberdade no futuro (a liberdade é uma esfera que se expande, não um lugar onde se chega). E se não experimento democracia hoje, nunca chegarei a qualquer democracia amanhã.
E a democracia também não é uma boa alternativa para quem quer transformar o mundo e produzir, como se dizia, um “homem novo”. Há um demônio sacerdotal escondido em todos os projetos de transformação. Esses projetos são, na verdade, projetos de condução. Alguém porventura sabe no que o mundo ou as pessoas devem se transformar? Ou tem uma ideia disso (uma ideologia) e quer levar os outros para esse futuro ideal mais justo e perfeito, mais saudável ou sustentável, mais isso ou aquilo?
O principal fundamento do liberalismo democrático é não ter projeto de condução dos outros. É não seguir e não ser seguido por ninguém – e sim caminhar sempre com-alguém.
A liberdade, para os inventores da democracia (os fundadores do liberalismo democrático), depende do modo como os seres humanos interagem. Por exemplo, se eles se isolam e não se associam não pode haver liberdade. Se eles não se juntam para contender com um problema que a todos afeta ou para realizar um projeto comum nascido dos seus desejos semelhantes ou congruentes, não pode haver liberdade. E se eles não criam novas realidades sociais a partir de tudo isso, não pode haver liberdade.
Quando fazem tudo isso, porém, os seres humanos não o fazem porque é necessário. O social é um campo que se cria a si mesmo a partir da interação fortuita, a rigor desnecessária pois que parte mais do desejo do que do interesse. Isto é a fruição da política. Ninguém pode ser livre sozinho. Quem está fora da polis (quer dizer, não da cidade-Estado e sim da comunidade - koinonia - política), não pode experimentar a liberdade.