O perigo do jornalismo militante
Editorial do Estadão
O perigo do jornalismo militante
Editorial, O Estado de S. Paulo (12/11/2025)
Manipulação de informações pela BBC expôs um vício sistêmico: os jornalistas que se creem iluminados já não informam, pregam. E, ao fazê-lo, traem o público e degradam a democracia
O escândalo que derrubou o diretor-geral da BBC (British Broadcasting Corporation), Tim Davie, foi mais que um tropeço editorial. A emissora manipulou falas do presidente americano, Donald Trump, num documentário para fazê-las parecer um apelo direto à violência. O episódio somou-se à revelação de que um programa sobre a guerra em Gaza fora narrado, sem aviso ao público, pelo filho de um ministro do Hamas. A BBC, criada há mais de um século para ser sinônimo de imparcialidade, violou a sua razão de ser: a credibilidade. O erro, grave em qualquer redação, é duas vezes pior em uma custeada pelos cidadãos. Quando uma emissora pública mente, o cidadão paga em dobro – com a confiança e com o bolso. E quando a mentira vem de quem se proclama modelo de excelência, ela contamina todo o ecossistema informativo.
O memorando interno do ex-conselheiro editorial da BBC Michael Prescott, divulgado pelo jornal inglês The Telegraph, expôs a anatomia do vício: uma cultura de resistência à crítica, de autocensura e vetos condicionados a tabus progressistas sobre gênero ou raça. A redação tomou o partido da virtude e esqueceu o dever da verdade. A neutralidade é vista como omissão, e a objetividade, como conformismo. A reportagem virou proselitismo. A pauta ambiental virou cruzada, a economia é narrada como denúncia e o noticiário internacional opera sob a convicção de que o Ocidente é sempre o culpado. Da cobertura de Gaza ao aquecimento global, a BBC já não descreve o mundo – evangeliza o público.
Seria reconfortante tratar o episódio como desvio isolado. Mas ele só expõe, em escala nacional, um tumor que vem degenerando o jornalismo no Ocidente. Redações se notabilizam cada vez mais como trincheiras morais onde alguns repórteres atuam como militantes e editores, como curadores da pureza ideológica. O resultado é um jornalismo menos interessado em compreender o mundo e mais empenhado em doutriná-lo. Em amplas camadas, o jornalismo deixou de ser uma busca compartilhada da verdade para se tornar uma catequese da tribo ilustrada.
Há veículos grosseiramente enviesados à direita. Mas a assimetria é gritante. A hegemonia progressista nas redações se disfarça de consciência coletiva. Segundo pesquisa do Reuters Institute, no Reino Unido 77% dos jornalistas se identificam como de esquerda e apenas 11% de direita. No Brasil, segundo pesquisa da Universidade Federal de Santa Catarina, a desproporção é ainda maior: 80,7% à esquerda, ante 4% à direita. Um levantamento da The Economist revelou que 17 dos 20 principais veículos dos EUA mimetizam predominantemente o vocabulário do Partido Democrata. A nova ortodoxia editorial não é imposta por governos, é cultivada nas redações.
Quando a imprensa se imagina consciência moral da sociedade, deixa de ser seu espelho e age como seu juiz. Ao invés de serem cronistas do real, muitos jornalistas tornaram-se missionários de suas idealizações. E quanto mais pregam, menos convencem. Em todo o Ocidente, cresce o abismo entre elites midiáticas e público. Uma democracia sem uma imprensa confiável é um corpo sem sistema nervoso. Se a sociedade não confia no jornalismo, torna-se incapaz de distinguir verdade de ruído, informação de propaganda.
Dia após dia, o jornalismo profissional é desafiado a manter seu papel de guardião da verdade factual em meio à torrente de distorções que capturam a atenção no mundo inteiro. Com seu exemplo de antijornalismo, a BBC ajudou a minar a confiança na imprensa, tal como desejam os inimigos das sociedades abertas.
Para recuperar a confiança e cumprir sua missão, o jornalismo precisa de humildade – isto é, precisa voltar a duvidar de si mesmo, e não apenas dos outros. A tarefa da imprensa independente não é salvar o mundo, é apenas descrevê-lo com honestidade. A verdade não pertence a um partido nem a uma causa, pertence ao público. E o jornalismo só o serve enquanto se lembra disso. Porque uma imprensa livre não se degrada quando é atacada por governos, mas quando blinda suas próprias certezas. Não morre quando é silenciada, mas quando deixa de escutar.




Bem parecido com vexames da TV Globo na eleições de Leonel Brizola e Fernando Collor.