Quantos agentes democráticos, pessoas que entendiam o sentido da reforma distrital proposta por Clístenes, por volta de 508 a.C., em Atenas, substituindo o genos pelo demos e, com isso, abrindo caminho para a primeira invenção da democracia, existiam? 10%? Nem pensar. 1%? Difícil. 0,1%? Mais provável.
Quantos agentes democráticos, pessoas que entendiam que era preciso resistir ao poder despótico de Carlos I na Inglaterra do século 17, abrindo caminho para uma segunda invenção da democracia como processo de desconstituição de autocracia, existiam? Mais provável, igualmente, que mal atingissem 0,1%.
Quantos agentes democráticos existiam, por volta de 1792, entre jacobinos e girondinos da revolução francesa? E quantos existiam em 1796 nos Estados Unidos? Provavelmente, na França, menos de 0,1% e nos EUA, se tanto, entre os agentes políticos de então.
Os democratas sempre foram minoria. E, no entanto, a democracia persiste. Por quê?
Jane Jacobs, investigando nos EUA, na década de 1950, por que algumas localidades americanas eram florescentes e outras declinantes, intuiu que isso era devido ao capital social, que ela identificava com redes de relacionamentos recorrentes entre as pessoas. Segundo ela, apenas 0,1% de agentes em uma localidade, “produzindo” capital social, já fariam grande diferença.
Em 1961, no livro "Morte e Vida das Grandes Cidades", Jacobs escreveu:
“É necessário um número surpreendentemente baixo de pessoas que estabeleçam ligação, em comparação com a população total, para consolidar o distrito como uma Entidade real. Bastam cerca de cem pessoas numa população mil vezes maior. Mas essas pessoas precisam dispor de tempo para se descobrir em umas às outras, para investir em colaboração proveitosa - e também para criar raízes nos diversos bairros menores locais ou de interesse específico”.
Jacobs talvez não soubesse que estava falando da democracia como modo-de-vida. Mas estava. A democracia como modo-de-vida é um ambiente propício à reprodução de comportamentos compatíveis com algumas ideias fundamentais:
de liberdade como sentido da política
de autonomia
colaborativas
de auto-organização e de rede (mais distribuída do que centralizada)
Ou seja, tudo aquilo que ela - Jane Jacobs - achava que contribuía para aumentar o estoque ou o fluxo de capital social.
Todavia, algumas coisas devem ser entendidas para que possamos dar uma resposta para a pergunta óbvia que se coloca neste ponto da presente reflexão:
Se os democratas (não as pessoas que dizem preferir a democracia a outros regimes, mas os que atuam como agentes democráticos) sempre são minoria, como se espera que consigam defender (e manter) o regime democrático?
Os agentes democráticos não são (nunca foram e nunca serão) maioria. Mas não é acarreando maiorias que a democracia se consolida e avança (consolidar é a mesma coisa que avançar: a democracia só se consolida na medida em que o processo de democratização prossegue). Os agentes democráticos são netweavers, não atuam arrebanhando massas, não atuam molarmente e sim molecularmente, provocando a fermentação que viabiliza a formação de uma opinião pública democrática.
É preciso esclarecer aqui que a opinião pública não é a soma das opiniões privadas da maioria e sim a opinião que resulta do entrechoque e da combinação (ou polinização mútua) das opiniões originalmente privadas. É preciso haver interação para que emerja uma opinião pública. E o que importa é que a opinião pública seja democrática e não que as opiniões privadas de todas as pessoas sejam majoritariamente democráticas (não foram, não são e não serão).
A possibilidade de que os agentes democráticos - que são e sempre foram minoria - não conseguirão mais atingir um número crítico mínimo necessário para desencadear mudanças moleculares capazes de fermentar a formação de uma opinião pública democrática, é o mais grave desafio à democracia na atualidade.
Mas como multiplicar o número de agentes democráticos? Publicando livros e artigos, gravando e divulgando vídeos e podcasts, promovendo debates e fazendo palestras para convencer as pessoas de que a democracia é o melhor regime político que já surgiu? Ministrando cursos de democracia? Inserindo a democracia nos currículos escolares?
Tudo isso pode ser útil, por certo. Mas não parece ser suficiente para que um número crítico mínimo de pessoas adote comportamentos democráticos no seu dia-a-dia. E, sem isso, sem que a democracia seja experimentada como modo-de-vida, não serão produzidos mais agentes democráticos, ainda que mais pessoas passem a concordar com a afirmação de que a democracia é um regime preferível à autocracia e, portanto, aumente a quantidade de assentimento favorável à democracia.
A “produção” de agentes democráticos como netweavers (articuladores e animadores de redes de pessoas), capazes de desencadear mudanças moleculares no fluxo interativo da convivência social, depende de livre aprendizagem, não de ensinagem. Não é função da apreensão de novos conteúdos e sim de mudanças de comportamento. Ideias não mudam comportamentos. Só comportamentos mudam comportamentos. O que caracteriza um agente democrático é um comportamento, não um saber.
Então, devemos fazer o quê concretamente?
Este artigo continua. Aguarde a segunda parte, se tiver interesse pelo tema.
P.S. Nas estimativas de Jane Jacobs, 100 pessoas numa população 1000 vezes maior, daria 0,001% e não 0,1%, como escrevi acima. É bem possível que ela tenha errado a mão nessas contas. Isso significa que num bairro de 2 mil habitantes, bastariam duas pessoas, o que não parece razoável (2 não performam nem um “átomo” de rede). Talvez 0,01% faça mais sentido. Penso que ela quis ilustrar com uma porcentagem, não calculá-la precisamente (mesmo porque ela não tinha os instrumentos para isso). De qualquer modo, 0,1% já é uma porcentagem relativamente pequena para ilustrar o que o artigo tenta dizer.