O que nos revela essa nova eleição de Trump?
Um primeiro olhar sobre o descontentamento e a descrença na sociedade americana
Diogo Dutra, Inteligência Democrática (07/11/2024)
Analisar a vitória de Trump é mais complexo do que parece. As análises políticas que chegam são carregadas de vieses e a correlação direta dos modelos americanos de eleição, incluindo a divisão Democratas-Republicanos não tem um paralelo tão direto com o Brasil. Normalmente eu tento conversar com amigos que vivem há muito tempo nos EUA e que conseguem dar panoramas e percepções mais diretos da vivência local. Não tive ainda tempo suficiente de conversar com esses amigos, mas aos poucos estou tentando digerir as informações e separar as diferentes causas dessa eleição (prevendo também um pouco de suas consequências).
Antes de qualquer coisa, a eleição de Trump revela o tamanho da crise na democracia americana. A escolha consciente de um abusador, autoritário e boçal como Trump revela que (i) o ressentimento, a descrença e a raiva tem direcionado mais as escolhas políticas, e (ii) outros valores estão ganhando prioridade em relação aos valores democráticos.
Em primeiro lugar, dada a vitória consistente não só para presidência, mas também câmara e senado, o resultado da eleição revela uma forte reação contra o partido Democrata e sua condução politico-econômica. Essa contra-reação pode ser vista não apenas como uma vitória de Trump, ainda visto como outsider, mas como um reflexo de uma insatisfação mais ampla e crescente contra o establishment, se considerarmos que o partido Democrata poderia ser percebido por muitos como mais integrado ao sistema do que os Republicanos. É uma percepção que ainda me é estranha, pois além do partido Republicano ser parte do establishment, Trump é ex-presidente e carrega uma série de políticas ineficientes além de uma condução desastrosa no início da pandemia.
Um fator talvez mais relevante seja a questão econômica (emprego e inflação) e o impacto direto que isso causa na vida cotidiana dos americanos, principalmente nos menos favorecidos. Parece que as pessoas estão buscando diagnósticos e soluções mais simples para seus problemas econômicos e sociais. E Trump oferece isso. É um recurso populista que eventualmente o partido Democrata não usa por tentar equilibrar as diversas demandas e paradoxos normais que qualquer governo e nação enfrentam. O discurso de Trump apela para aqueles que veem na economia de mercado e no protecionismo/nacionalismo uma forma de garantir estabilidade e segurança. Os resultados de Trump em eleitores não-brancos (latinos, asiáticos, árabes e negros), principalmente os jovens, revela um pouco essa escolha.
Um ponto novo para mim nessa eleição foi o apoio direto e escancarado de algumas figuras influentes do Vale do Silício. Esse apoio, especialmente de Elon Musk e Peter Thiel, sugere uma mudança na base estratégica de Trump, apontando talvez para um afastamento de figuras como Steve Bannon e uma aproximação com empresários de visão pragmática, tecnoburocrata e extremamente competitiva de mundo. Se essa mudança estratégica vai de fato se concretizar não dá para prever, mas é uma mudança significativa em relação à ultima eleição de Trump. Essa possível guinada em direção a uma visão econômica competitiva e protecionista, pode trazer resultados econômicos para os Estados Unidos, especialmente em setores estratégicos e na geração de empregos. No entanto, essa abordagem levanta preocupações sobre uma possível redução no grau de democracia e nos valores democráticos tradicionais, mesmo que estes se digam a favor da liberdade de expressão.
Por fim, é importante notar que há uma corrente anti-“woke” que também parece ganhar força na base da sociedade americana. Esse movimento anti-woke reflete não só uma rejeição pura às políticas de identidade, mas ao comportamento iliberal e agressivo que os movimentos ativistas têm demonstrado em tempos recentes. No entanto, eu ainda tenho dúvidas sobre o quanto esse fator realmente impulsionou o eleitorado de base a apoiar Trump em massa, sendo que questões econômicas e de segurança parecem ter tido um peso maior.
Em resumo, a vitória de Trump não me parece uma vitória pessoal, mas sim um símbolo de uma série de descontentamentos enraizados. A insatisfação com o establishment, os problemas econômicos e a rejeição a certas políticas progressistas parecem ter se unido em um fenômeno político de larga escala, que deverá influenciar a política e a democracia americanas nos próximos anos. A preocupação, além dos impactos enormes que essa nova política americana terá no mundo, está na percepção de que essa onda de autocratização do mundo ainda está muito latente na maneira de pensar das pessoas. Há um claro menosprezo dos problemas dos populismos e dos governantes iliberais em favor de outras agendas específicas e os democratas (não do partido) não estão conseguindo mostrar que a única solução possível seria dobrar a aposta na democracia.
Bom dia Diogo Dutra!
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