O que sobra de nós quando o "entre nós" desaparece?
Há lugares do mundo em que “sociedade” se torna um rótulo vazio, como ocorre na Coreia do Norte. São contextos em que indivíduos se apresentam ao Estado como quem cumpre expediente, repetindo um gesto automático. A convivência fora do círculo familiar foi comprimida: relações convertidas em cadastros, liberdade reduzida a métricas estreitas.
Onde sociedades resistem, existe um campo humano em movimento — encontros inesperados, conversas que surgem sem planejamento, colaborações capazes de resolver o que ninguém solucionaria de modo isolado. Formações sociais autênticas emergem desses episódios cotidianos: uma mão estendida num momento crítico, uma ideia que aparece sem cerimônia, um conflito tratado de modo pacífico. Gestos assim, discretos e autênticos, sustentam a democracia com mais vigor do que qualquer estrutura institucional.
O risco aumenta quando vínculos se desfazem. Grupos locais se esvaem, conselhos deixam de se reunir, coletivos se dispersam, redes de apoio se desarticulam. A velocidade passa a ser tomada como competência; módulos rígidos avançam enquanto arranjos colaborativos recuam. Antes de ser regime, o autoritarismo opera como método. Promete eficiência, ordem e precisão — como se questões humanas coubessem em planilhas de avaliação de conformidade.
Nesse quadro, o Estado revela sua ambiguidade. Organiza a seu modo, criando ordem, protege quem decide e carrega o impulso de ocupar todos os espaços. Quando a linha que separa o público do privado se confunde, o que ainda não recebeu regulamentação começa a soar como pendência crítica, e a máquina estatal deteriora o que a sociedade deixou de cultivar.
A democracia se realiza no convívio social. Alimenta-se do dissenso, do confronto intelectual, da improvisação e da dúvida. É desigual, imperfeita, ruidosa e indispensável. Seu vigor depende menos da estabilidade formal e mais da nossa disposição de mantê-la viva. É nesses ambientes que a liberdade se manifesta: discordamos, cometemos erros, reconstruímos e criamos balanços transitórios. Em dias generosos, e são muitos, conseguimos até melhorar nossas vidas.
Sociedades sólidas surgem de práticas contínuas de convivência: encontros, mutirões espontâneos, grupos de apoio e exercícios de autogestão. São formadas por pessoas que valorizam sua comunidade o bastante para não transferir responsabilidades. Onde esses vínculos persistem, o Estado encontra limites naturais, porque não precisa ocupar o que permanece ativo.
O que sobra de nós se o “entre nós” desaparecer? Muito pouco. Enquanto existirem interações — mesmo discretas — haverá sociedade. E, enquanto uma sociedade existir, a democracia continuará pulsando.




