O regime político brasileiro
Classificar regimes políticos para saber se são democráticos ou autocráticos - e em que grau são democráticos ou democratizantes ou autocráticos ou autocratizantes - é um grande problema da chamada ciência política.
Entre os três institutos mais reconhecidos internacionalmente, que monitoram os regimes políticos no mundo, estão a Freedom House, a The Economist Intelligence Unit e o V-Dem (Universidade de Gotemburgo).
A Freedom House classifica os regimes em três tipos: Free (Livre), Partly-Free (Parcialmente Livre) e Not-Free (Não Livre). O regime brasileiro é classificado como Free.
The Economist Intelligence Unit classifica os regimes em quatro tipos: Full Democracy (Democracia Plena), Flawed Democracy (Democracia Defeituosa), Hybrid Regime (Regime Híbrido) e Authoritarian Regime (Regime Autoritário). O regime brasileiro é classificado como Flawed Democracy.
O V-Dem classifica os regimes em quatro tipos: Liberal Democracy (Democracia Liberal), Electoral Democracy (Democracia Eleitoral), Electoral Autocracy (Autocracia Eleitoral) e Closed Autocracy (Autocracia Fechada). O regime brasileiro é classificado como Electoral Democracy.
A Freedom House adota dois índices para avaliar os regimes: Direitos Políticos e Liberdades Civis.
A The Economist Intelligence Unit adota cinco índices: Processo Eleitoral e Pluralismo, Funcionamento do Governo, Participação Política, Cultura Política e Liberdades Civis.
O V-Dem adota seis índices: Democracia Liberal (uma espécie de síntese, chamado LDI), Democracia Eleitoral, Componente Liberal, Componente Igualitário, Componente Participatório, Componente Deliberativo.
É claro que toda classificação é imperfeita e, em alguma medida, arbitrária. Mas quando há uma convergência entre diferentes classificações, isso pode ser um sinal de que as descrições se aproximam da realidade.
Pode-se discutir as limitações dessas classificações. O que é chamado de regime livre ou democrático eleitoral engloba uma variedade, muitas vezes não-homogênea, de regimes.
Ainda que nenhum dos regimes exemplificados a seguir seja uma democracia plena ou uma democracia liberal, os regimes do México, da Colômbia, da Bolívia, do Brasil, da Indonésia e da África do Sul não são a mesma coisa que os regimes de Portugal, da Áustria, da Bulgária, da Croácia, da Moldávia e da Lituânia. Todos (ou quase todos) são chamados de livres ou democráticos, mas melhor seria chamá-los de regimes eleitorais não-liberais: a) em transição democratizante (ou seja, tendentes a virar democracias propriamente ditas, plenas ou liberais); ou, b) em transição autocratizante (quer dizer, tendentes a virar regimes eleitorais híbridos, parcialmente livres, autoritários ou autocracias eleitorais).
Para dar alguns exemplos, na classificação proposta acima (de cinco tipos de regimes políticos) enquadram-se na categoria 1, as democracias liberais ou plenas (como a Noruega ou a Nova Zelândia); na categoria 2, as democracias eleitorais, ainda que defeituosas (como Portugal e Croácia); na categoria 3, as ainda chamadas de democracias eleitorais (como Brasil e África do Sul); na categoria 4, autocracias eleitorais (como Irã e Rússia); e na categoria 5, autocracias fechadas ou ditaduras do século 20 (como China e Cuba).
Em geral, um regime eleitoral corre o risco de entrar em transição autocratizante se permanecer parasitado por populismos ou, pior, enquanto for campo para a polarização entre dois populismos (um populismo-autoritário ou nacional-populismo, dito de direita ou extrema-direita e um neopopulismo, dito de esquerda - ambos não-liberais, como ocorre no Brasil no embate entre bolsonarismo e lulopetismo).
O CASO DO BRASIL
O Brasil não é uma democracia liberal (ainda que nossa Constituição de 1988 tivesse desenhado os contornos de um regime liberal).
Segundo a classificação do V-Dem (da Universidade de Gotemburgo) o regime político brasileiro, como vimos, não é uma Liberal Democracy (democracia liberal), mas apenas uma Electoral Democracy (democracia eleitoral).
O Brasil também não é uma democracia plena. Segundo a classificação da The Economist Intelligence Unit não é uma Full Democracy (democracia plena), mas uma Flawed Democracy (democracia defeituosa).
Tomando como base os critérios elencados pelos pesquisadores do V-Dem - Anna Lührmann, Marcus Tannenberg e Staffan Lindberg (2018), no seu importante artigo Regimes of the world (ROW) - é possível mostrar por que somos uma democracia eleitoral:
a) Há eleições nacionais e elas são multipartidárias: a concorrência entre os partidos não é restringida em grau significativo.
b) Nossas eleições nacionais são razoavelmente limpas, livres e justas: há irregularidades pontuais, mas as eleições não são prejududicadas por fraudes sistemáticas e as irregularidades não afetam o resultado eleitoral (para o executivo e o legislativo).
c) Os governantes têm, minimamente, de ser responsivos aos cidadãos.
d) As organizações políticas e da sociedade civil podem operar livremente.
e) Entre as eleições há liberdade de expressão e uma mídia independente do governo pode apresentar visões alternativas sobre questões de relevância política.
Todavia, não somos uma democracia liberal porque:
a) Não há uma cultura política que valoriza a pluralidade política: as oposições democráticas não são reconhecidas como players legítimos e fundamentais para o bom funcionamento do regime.
b) A visão predominante do poder político é excessivamente "positiva": os limites e condicionamentos impostos pela sociedade às instituições do Estado são insuficientes. Na visão predominante das forças políticas majoritárias, a qualidade da democracia não se verifica pela medida em que a sociedade controla o governo (que seria compatível com uma visão liberal, "negativa", do poder político) e sim, frequentemente, dá-se o contrário. Como consequência, a sociedade não controla o governo em grau satisfatório: o governo atua para controlar a sociedade e conquistar hegemonia sobre ela a partir da sua visão.
c) Há proteções aos direitos individuais e das minorias contra a tirania do Estado, mas não há proteções suficientes contra a tirania da maioria: em outras palavras, da parte das forças políticas dominantes, há uma confusão entre democracia e majoritarismo (democracia como prevalência da vontade da maioria e não como regime de múltiplas minorias políticas); ou não há uma recusa enfática ao majoritarismo e ao hegemonismo.
d) As liberdades civis são constitucionalmente protegidas, há forte domínio da lei, mas o judiciário, conquanto seja, em boa medida, independente, não é constrangido de modo efetivo pelos freios e contrapesos institucionais.
e) Há forte polarização introduzida por populismos que parasitam o regime democrático: não há uma recusa clara da prática da política como continuação da guerra por outros meios ("nós contra eles") que transforma adversários em inimigos. As forças políticas dominantes (no governo e na oposição) não acham que seja normal que a sociedade esteja dividida entre muitas - e às vezes transversais - clivagens: pelo contrário, acreditam que a sociedade está dividida por uma única clivagem separando a vasta maioria (o povo) do "establishment" (as elites). Em consequência, as forças políticas dominantes não acham que a melhor maneira de lidar com essas clivagens seja por meio de um debate aberto e livre, sob uma cultura política que valoriza a moderação e a busca do consenso. Contra isso, encorajam a polarização (povo x elites), acreditando que os representantes do povo são os atores legítimos (ou mais legítimos) e que eles devem buscar suplantar os representantes das elites, fazendo maioria em todo lugar onde isso for possível (majoritarismo).
f) As minorias sociais são protegidas e valorizadas pelo governo, mas as minorias políticas (consideradas antipopulares) não são bem toleradas e as forças políticas dominantes acham que essas minorias devem ser deslegitimadas quando impedem a realização das políticas populares.
g) Não há suficiente abertura para a interação com a sociedade (nem mecanismos institucionais capazes de viabilizar a influência dos cidadãos na forma como atua o governo).
Resumindo. O regime político brasileiro é, sim, uma democracia. Mas uma democracia (apenas) eleitoral, uma democracia defeituosa e está longe, bem longe, de ser uma democracia liberal ou uma democracia plena.
Tudo que não é democracia (liberal ou eleitoral) é autocracia (eleitoral ou não-eleitoral ou fechada). O Brasil não é uma autocracia. Mas enquanto estiver parasitado por populismos será um regime eleitoral em transição autocratizante (categoria 3, no diagrama acima), correndo o risco de se converter em um regime eleitoral autoritário.