O revolucionário é um reacionário e vice-versa
Este artigo poderia ser considerado um adendo à nota Sobre o futuro do passado e o presente do futuro. Não é. Mas seria bom ler o artigo linkado acima antes de prosseguir a leitura.
Entre os que se dizem conservadores muitos são reacionários (revolucionários para trás). Entre os que se dizem progressistas muitos estão apenas maquiando suas posições: são, na verdade, revolucionários (reacionários para frente).
O revolucionário sempre é um reacionário (para frente). É um reacionário porque reage à multiplicidade de linhas temporais que nos levam ao futuro. Ao escolher e tentar impor pela força, ex ante à interação, uma linha temporal em detrimento das demais, o revolucionário (quer dizer, o reacionário para frente) tranca o futuro. Ora... uma sociedade que não tenha um futuro aberto não pode ser uma sociedade aberta. Todo aquele que não quer uma sociedade aberta é um reacionário.
O reacionário sempre é um revolucionário (para trás). É um revolucionário porque quer mudar abruptamente o presente voltando ao passado, quer dizer, impondo uma visão congelada do passado. Isso tranca o passado, porque impede a busca de novas linhas temporais que poderiam (poderão) ter nos trazido ao presente. Uma sociedade que não tenha um passado aberto não pode ser uma sociedade aberta. Se o passado não continuar aberto (ou sendo incerto), não pode haver liberdade. Todo aquele que não quer uma sociedade aberta é um revolucionário.
Democratas podem ser conservadores ou inovadores (como mostra o primeiro dos dois diagramas que ilustram este artigo). Nunca serão revolucionários, para frente ou para trás. O eixo revolucionário-reacionário é ortogonal em relação à democracia (o eixo conservador-inovador). Os sub-quadrantes 1 e 3, mais próximos desse eixo das ordenadas (o eixo da autocracia), são campos iliberais que não aceitam o presente da política (e por isso querem fugir para o passado ou para o futuro). São neles que florescem os populismos (no 1, o neopopulismo dito de esquerda, que agrega revolucionários disfarçados de progressistas; no 2, o populismo-autoritário ou nacional-populismo dito de direita ou extrema-direita, que reúne reacionários travestidos de conservadores). Os sub-quadrantes 2 e 4, mais próximos do eixo das abcissas (o eixo da democracia), são os campos da política propriamente dita, onde ocorrem as reformas possíveis, sem necessidade de explodir tudo para começar do zero, seja restaurando uma ordem pregressa, seja inaugurando uma ordem futura (ambas imaginárias). Isso se chama reação, quer dizer, revolução para trás, quer dizer, revolução, quer dizer, reação para frente; em suma: não aceitação do presente.
Por isso os democratas são reformistas. A democracia nasceu com uma reforma: a reforma distrital de Clístenes em 509 a.C. - que trocou o genos (os clusters familiares da aristocracia fundiária) pelo demos (distrito) - e se consolidou com a reforma (de origem e data desconhecidas) que introduziu o sorteio como processo de decisão que ignora o passado (a herança) e o futuro (o projeto) e com a reforma promovida por Efialtes, em 461 a.C., que retirou o poder político do Areópago (mal-comparando, uma espécie de suprema corte da época).
Quando implementam uma reforma os democratas tentam ficar no presente. Não se arrogam a saber - e não sabem mesmo - as consequências que virão das mudanças, nunca apocalípticas, que introduzem. Não fazem isso para voltar a algum regime idealizado do passado com vistas a reeditá-lo (e por isso não são reacionários) ou para assaltar o futuro e trancá-lo com um modelo de ordem pré-concebido (e por isso não são revolucionários).
Onde houve revolução não surgiu democracia. O caso paradigmático é o da Revolução Francesa. No famoso trístico da Revolução Francesa, a única matéria propriamente política é a liberdade. A igualdade e a fraternidade são desejáveis, mas são matérias extrapolíticas. A igualdade (política) é condição para a política (democrática), mas não pode lhe dar um sentido. A fraternidade pode ser um generoso objetivo, mas não pertence ao reino da política. O mesmo vale para a justiça e a felicidade. Isso é quase impossível de ser entendido pela chamada esquerda. Aliás, não foi à toa que a Revolução Francesa não reinventou a democracia, mas em compensação inventou a esquerda. Nem Diógenes, com sua lâmpada, encontraria um democrata entre jacobinos e girondinos.
Entretanto, a democracia na época moderna foi reinventada em termos simbólicos (e práticos), um século e meio antes da Revolução Francesa, na resistência do parlamento inglês ao poder despótico de Carlos I. A França vira um regime eleitoral (pré-democrático) em 1792, mas isso só dura 7 anos (em 1799 já era uma autocracia fechada). Depois só voltará a ser um regime eleitoral em 1848, ainda que autocrático (menos de um ano depois a Suíça surgiria como a primeira democracia liberal do planeta). Em 1851 a França volta a ser novamente uma autocracia fechada e assim permanece até 1870. Somente em 1874 a França será uma democracia eleitoral (não-liberal) e apenas em 1947 alcançará, pela primeira vez, a condição de democracia liberal.
E antes tivemos a chamada Revolução Americana. Há muitas narrativas míticas sobre a democracia americana. Os EUA não foram o primeiro regime eleitoral da onda pré-democrática que vai de 1790 a 1848 (o foram a Inglaterra e a Irlanda, em 1790). Os EUA não foram a primeira democracia do mundo (foi a Suíça, em 1849). Os EUA não foram pioneiros e sim retardatários na primeira onda de democratização que vai de 1849 a 1921: só viraram uma democracia eleitoral em 1921 e uma democracia liberal em 1969.
Outro caso paradigmático é o da Revolução Russa, que dispensa comentários pelo seu caráter intrinsecamente antidemocrático. A não ser para os que confundem igualdade com liberdade (ou acham que uma verdadeira ou plena liberdade só haverá quando tivermos uma sociedade igualitária em um mítico reino da abundância). Ou para os que querem reduzir democracia à cidadania, como fazem quase todas as variantes da esquerda.
O sentido da política (democrática) é a liberdade (não a ordem). Mas a liberdade, em si, não tem sentido algum. Como escrevi em outro lugar, “quando não houver mais nada que precise ser feito, o que restará é a liberdade… a liberdade de ser infiel à sua origem (quer dizer, a de ser livre de qualquer passado, de qualquer path-dependence) e a liberdade de não ter propósito, de não ter rumo (quer dizer, a de ser livre de qualquer futuro, de qualquer utopia e, a rigor, de qualquer projeto)”. A liberdade é aceitar o presente com todas as suas incertezas, a sua vulnerabilidade aos erros, a sua falta de retidão, de pureza e de perfeição (sim, a democracia é torta, suja e imperfeita - ainda bem). Revolucionários e reacionários o são porque não conseguem aceitar nada disso.