O silêncio não é uma opção
No Uber, o silêncio é um serviço.
O aplicativo pergunta: “Deseja conversar durante o trajeto?” como se fosse “Prefere que eu não tente fazer contato com você?”.
Pode parecer apenas um detalhe tecnológico, mas não é.
É o retrato de uma era em que o silêncio precisa ser confirmado por botão.
O motorista puxava papo sobre futebol, tempo, política — quando se podia falar de política sem parecer provocação.
A convivência virou uma configuração de aplicativo.
A cena é banal: dois desconhecidos em um carro, dividindo a mesma rota.
Mas o que poderia ser um encontro transforma-se em protocolo.
O passageiro clica em “não conversar”, o motorista entende, e o carro se converte em uma cápsula de silêncio consentido.
Parece confortável, e de certo modo é.
Mas há algo melancólico nesse acordo tão limpo, tão eficiente, tão tecnológico — e tão sem humanidade.
O botão do silêncio promete liberdade: a de ficar livre de incômodos, de histórias repetidas, de opiniões imprevistas.
Mas essa liberdade vem sem o risco da convivência.
É uma liberdade que exige distância.
A tecnologia, nesse gesto simples, cumpre um desejo antigo: o de controlar o imponderável das relações humanas.
É curioso como o silêncio, que antes era virtude, virou produto.
Compramos paz e evitamos o outro como quem evita o vírus.
A vida, que sempre foi mistura e acaso, agora é feita de zonas de exclusão invisíveis.
Ao clicar no botão, a pessoa acredita estar escolhendo conforto.
Na verdade, renuncia a uma possibilidade: a de ouvir, rir, se irritar ou se surpreender.
Talvez o motorista fosse um contador de histórias de primeira, e dissesse uma bobagem e, sem querer, nos lembrasse de que o mundo continua pulsante.
Mas não — o carro desliza mudo, como se cada passageiro fosse uma ilha sobre rodas.
A conversa virou risco, e o silêncio, segurança.
O espaço comum se esfarela.
A verdade é que, quanto mais liberdade temos para escolher, mais tendemos a escolher o isolamento.
A tecnologia oferece a ilusão do controle, e nós aceitamos com gratidão.
Preferimos a rota previsível à estrada incerta do diálogo.
Mas o preço disso é alto: o desaparecimento do acaso — esse tempero invisível que nos faz humanos.
Evitar conversas banais pode parecer uma forma de proteger a mente do ruído.
Lembre que o silêncio constante cria outro tipo de ruído: o da ausência.
O mundo vai ficando mais calado e frio.
Não há mal em querer paz; o problema é quando a paz custa o desaparecimento da vida em comum.
Ser livre não é viver sem incômodo.
É poder se arriscar — inclusive ao incômodo do outro.
A convivência é a matéria-prima da liberdade, e o diálogo, seu instrumento mais imperfeito e bonito.
Entre a liberdade de escolher o silêncio e o medo de se encontrar, a convivência humana se transforma em produto.
O perigo é achar que o silêncio é neutro.
Ele comunica cansaço e desistência.
Se o botão do silêncio se espalhar pela vida, descobriremos que não restou ninguém disposto a apertar o “Desejo conversar”.
O silêncio é o medo de se ouvir.




