Para além da visão economicista dos fenômenos sociais
A confiança como pilar para evitar desconsolidações democráticas
Diogo Dutra, Inteligência Democrática & Projeto Villa (06/07/2024)
Revisores: Thiago Padovan e Mauai Mauro de Toledo
"- A: Dentro do capitalismo não tem saída, vamos afundar na barbárie.
- B: Mas o que exatamente é isso que você chama de "capitalismo"?
- A: Ora, meu caro, não banque o cínico, todos sabem exatamente do que se trata!
- B: Desculpe, mas estou sendo sincero. Eu nunca sei ao certo o que vai pela cabeça de alguém quando acusa "o capitalismo" disso ou daquilo; quando você diz capitalismo, está falando do capitalismo de Marx ou Weber, Hayek ou Zizek?
- A: Falo do que está bem aí, diante do meu e do seu nariz: da ganância desenfreada que tomou conta do mundo, do poder nefasto da grana, dos governos corruptos dominados pelos bancos e empreiteiras, do consumismo insano que nos é enfiado todo o tempo goela abaixo, desse sistema injusto e excludente comandado pelo grande capital globalizado...
- B: Ah, acho que começo a entender. Você está puto com tudo isso que aí está e então resolveu criar o seu próprio conceito de capitalismo; ele é o demônio, ele é a raiz de todos os males...
- A: Mas, afinal, de que lado você está?! Acho que no fundo você só quer mesmo é confundir as coisas; tergiversar para deixar tudo na mesma, naturalizar o status quo, desviar a atenção do verdadeiro inimigo.
- B: Só falta agora você me xingar de neoliberal! Pois saiba que talvez estejamos mais próximos do que você imagina. Não sou menos inconformado que você, só não consigo é ver em que acusar "o capitalismo", "o sistema" ou o nome que você quiser dar ao monstro vai nos ajudar um milímetro a sair do buraco ou entender o que há de errado no mundo. E se "ele" não passa de um borrão conceitual fabulado por filósofos teutônicos, onde cada um mete o que lhe convém; e se "ele", como o flogisto, o santo graal ou unicórnio, nunca tiver existido?
- A: Mas onde afinal você quer chegar?
- B: Proponho uma medida profilática: abandone o cacoete, aposente o surrado vilão, diga tudo que tem a dizer sobre o que vai mal no mundo, não altere uma vírgula, mas faça-o sem invocar essa muleta preguiçosa da crítica, sem recorrer a essa invenção prussiana de mil gavetas e mil espelhos chamada "capitalismo": aceita o desafio?
- A: Pois faça você isso! Castrar tola e inutilmente o meu discurso, nem pensar!"
O diálogo acima intitulado "Rorschach ideológico", extraído do livro "Trópicos Utópicos" de Eduardo Giannetti (2016), ilustra bem o tipo de dissonância atual presente na sociedade polarizada. A simplificação do pluralismo político em esquerda e direita tem feito um enorme estrago na simplificação de raciocínios, na generalização de comportamentos e nas possibilidades de solução para os problemas sociais cada vez mais complexos que estão surgindo.
O mais impressionante disso tudo é que o tipo de framework que sustenta essa bi-partição é resultado de uma contraposição histórica de séculos atrás de visões economicistas que insistem em reduzir problemas sociais complexos a soluções e comportamentos puramente econômicos. O grande conjunto dos nossos principais intelectuais e pesquisadores das ciências sociais, políticas e econômicas, infelizmente, ainda não conseguiu enxergar que a complexidade do mundo não pode ser mais explicada por uma disputa entre visões de mundo estadocêntricas e mercadocêntricas.
O diálogo descrito por Giannetti ilustra um debate comum na crítica social e econômica contemporânea: a tensão entre a necessidade de uma análise precisa e específica e a tendência de usar termos gerais e emocionalmente carregados para criticar sistemas complexos. A posição de A representa uma crítica visceral e abrangente ao capitalismo, enquanto B argumenta pela necessidade de rigor conceitual e especificidade para entender e resolver os problemas sociais. E a rigor nesse diálogo há não só pouco entendimento, mas uma animosidade gritante.
As perspectivas de Claus Offe: Estado, mercado e comunidade
O fato de existir uma persistência intelectual nos círculos acadêmicos que transpassa, por meio da polarização, para a sociedade hoje, não quer dizer que já não houve no passado recente intelectuais e cientistas políticos que propuseram maneiras mais contemporâneas e complexas de analisar os fenômenos sociais. Nos meados dos anos 90, no meio de uma onda emergente do terceiro setor, o cientista político e sociólogo alemão Claus Offe já se destacava na crítica à abordagem simplista das ciências sociais e políticas que se concentrava em reduzir complexas interações sociais a modelos econômicos. A abordagem sugerida por Offe começa pela ideia de que para entender plenamente os fenômenos sociais, é essencial considerar três pilares (eu gosto de chamar de "esferas") complementares, independentes e interconectados: Estado, mercado e comunidade.
Nesse sentido, negligenciar qualquer um desses pilares (ou esferas) pode levar a desequilíbrios e crises sociais. Portanto, soluções estadocêntricas são soluções que modelam a dinâmica social a partir de uma visão econômica intervencionista que se impõe sobre as dinâmicas das esferas de mercado e da comunidade. Na prática, essa visão está profundamente enraizada em modelos e pressupostos de um comportamento humano que se operado sem tutela (e controle) gera destruição. Já seu contraponto econômico-filosófico histórico, o mercadocentrismo, apresenta soluções que modelam a dinâmica social a partir de uma visão econômica individualista e racional que se impõem sobre as dinâmicas das esferas de mercado e da comunidade sob uma visão de competição e escassez. E durante anos a fio e por meio de diversos pensadores, sociólogos e cientistas sociais a disputa se deu (e ainda se dá) sob a ótica de uma modelagem de comportamento humano puramente econômica.
A novidade trazida por Offe está em um esquema interpretativo que tem se revelado extremamente útil para a compreensão da realidade social contemporânea. Abaixo coloco um trecho de uma conferência feita pelo mesmo em 1999 sob o título “A atual transição da história e algumas opções básicas para as instituições da sociedade” que pode ser encontrado na íntegra no site Dagobah.
"O objetivo desse breve exercício em sociologia básica é nos auxiliar a compreender a verdade dual que pretendo demonstrar com este artigo. Primeiro, a provisão de ordem social e estabilidade através de instituições não pode se basear somente em um desses padrões – Estado, mercado e comunidade. Qualquer desenho institucional monístico tende a ignorar (no plano teórico) e destruir (em suas implicações práticas) as contribuições que os outros dois componentes da ordem social têm para dar. Segundo, esse tipo de desenho não pode se basear nem mesmo na combinação de apenas dois desses padrões (isto é, excluindo o terceiro respectivo), sejam sínteses mercado-Estado, Estado-comunidade, ou comunidade-mercado. Precisamos de todos os três fundamentos da ordem social, e numa mistura que consiga evitar que cada um deles se sobreponha aos outros e os elimine. O problema do desenho apropriado de instituições pode então ser formulado como o de manter a distância apropriada dos extremos das soluções “puras” e, ao mesmo tempo, evitar o uso “muito reduzido” de qualquer um daqueles fundamentos…
O problema de desenhar e defender relações Estado-sociedade, no entanto, não está em simplesmente escolher um dos três padrões de forma simplista, mas de se engajar, ou, na pior hipótese, tolerar um processo de desenho processual, reajustamento e sintonização fina de uma mistura rica e adequada na qual os três blocos da ordem social tenham papeis variáveis que se limitem entre si. A capacidade de inventar, implementar e tolerar essas “colchas de retalho” de ordem social impura ideológica e substancialmente, é a marca da civilidade ou do “comportamento cívico”, isto é, a habilidade e a vontade dos cidadãos de utilizar deliberação aberta e pacífica, assim como métodos institucionais para enfrentar os conflitos sociais e políticos. O comportamento cívico e os recursos políticos garantidos pela democracia liberal nos permitem lidar com os dilemas colocados pelo fato de que vivemos para além do tempo em que bastavam (se não apenas aparentemente) os pronunciamentos de alguma “linha correta”, “doutrina governante”, “melhor forma” ou, nesse particular, do “Consenso de Washington”. O comportamento cívico, em outras palavras, pode ser concebido como o ponto de Arquimedes fora do centro de gravidade de qualquer dos três paradigmas da ordem social, a partir dos quais o seu escopo respectivo pode ser avaliado e reconfigurado."
Então, é possível entender que a esfera do Estado tem uma forma de operar própria, da mesma maneira que o mercado, bem como a comunidade. Tentar implementar o pacote lógicas de mercado no Estado, seja ele gestão de recursos, competição e maximização de retorno sob investimento etc. não funciona. Isso não quer dizer que não exista polinização e zonas de intersecção entre as esferas, mas que se uma lógica de uma esfera tentar submeter a outra vai causar efeitos de segunda e terceira ordem indesejáveis. O mesmo quando pensamos em dominação da lógica do Estado no mercado. A criação de monopólios, por decisões políticas e não por saúde financeira, a dificuldade de gestão de pessoas, sufocam a sustentabilidade e a inovação inerente de mercados pulsantes. O que também não quer dizer que não existam casos de empresas estatais necessárias, regulações e até associações público-privadas que podem funcionar operando entre as duas esferas.
Por fim, cabe ressaltar a importância da esfera "comunidade", que pode ser entendida como o espaço de livre associação das pessoas na base da sociedade que não tenham necessariamente fins econômicos. É nessa esfera que encontramos motivos não-racionais e não-utilitários para estar juntos. É onde o cálculo do ganho ou do controle é substituído pelo altruísmo e espírito fraternal. E seria a esfera mais negligenciada, em termos de entendimento como uma forma de operação própria pelas ciências sociais, e contudo, talvez a esfera que contenha características mais humanas, ou matrísticas (segundo Humberto Maturana), dentre as três esferas. Fazendo uma analogia simplista aqui, parece que ficamos tantos anos competindo para colocar igualdade acima da liberdade ou liberdade acima da igualdade que esquecemos do elemento fraternidade e que os três deveriam estar legitimados no mesmo nível, nenhum acima de outro.
Um desdobramento econômico da esfera comunidade: o livro "Trust" de Fukuyama e a noção de capital social
Uma maneira bem original de pensar, e até certo modo intuitivo, que agrega no entendimento da relação da esfera comunidade com as esferas Estado e mercado é a partir do conceito de capital social. O conceito de capital social não é tão novo e apresenta muitas definições, estudos e debates no meio acadêmico. Porém, foi a partir do livro "Trust: The Social Virtues and the Creation of Prosperity" de Francis Fukuyama (1995) que sua relação com as outras dinâmicas sociais ficou mais clara para mim.
Fukuyama critica a tendência da ciência política de modelar sistemas políticos a partir de frameworks econômicos, ressaltando que a confiança entre as pessoas é essencial para o funcionamento das economias e democracias. Sociedades com alto grau de confiança tendem a ser mais prósperas e democráticas, enquanto a desconfiança generalizada leva à fragmentação social e ao colapso das instituições.
A argumentação de Fukuyama se dá em torno do grau de confiança entre as pessoas de uma sociedade. Além de correlacionar esse fator com aspectos básicos de socialização, tradição e cultura, este aponta esse fator como primordial para uma economia eficiente. É o chamado capital social.
A confiança, segundo Fukuyama, não emerge espontaneamente, mas é construída através de normas sociais e tradições que promovem a cooperação e a solidariedade. Ele observa que há uma relação inversa entre regras e confiança: quanto mais as pessoas dependem de regras para regular suas interações, menos confiam umas nas outras. Esse equilíbrio delicado é fundamental para o funcionamento tanto das economias quanto das democracias. Fukuyama também destaca que a cooperação social depende de hábitos, tradições e normas que estruturam o mercado, sugerindo que um mercado bem-sucedido é co-determinado pelo capital social preexistente.
O mais interessante é que ele aborda comparativamente sociedades como Japão, China (incluindo Taiwan e Hong Kong), Coreia do Sul, França, Itália, Alemanha, Reino Unido e EUA. Todas sobre aspectos culturais e derivações econômicas do pós-segunda-guerra. A obra não trata de uma análise sobre a economia dos países, trata de um olhar para as relações de confiança na sociedade e as consequências políticas-econômicas em sociedades que apresentam uma “sociabilidade espontânea” maior do que outras.
Ou seja, parece que a estrutura de Offe somada às evidências e correlações encontradas por Fukuyama corroboram para a urgência da emergência de uma nova forma de análise sobre os problemas sociais atuais. É preciso que haja uma superação da análise com proposições que incorporem a complexidade das três esferas e que admitam uma lógica da esfera comunidade envolvendo a ideia de confiança na base da sociedade e nas instituições. A consequência de não termos conseguido ainda caminhar para uma análise mais complexa é o constante andar em círculos de proposições e debates e uma galopante polarização.
A crise da democracia sob os prismas economicistas dos fenômenos sociais
A falta dessa visão tem gerado percepções muito equivocadas sobre a atual crise das democracias no mundo e sobre a consequente onda de autocratização que vem ocorrendo.
Um exemplo é o conhecido pesquisador e professor de ciências políticas Adam Przeworski que publicou em 2020 o livro "Crises da democracia". Nessa obra Przeworski parece tentar se agarrar o tempo todo em explicações economicistas, eventualmente mostrando seus furos, utilizando contra-exemplos ou demonstrando o fraco poder explicativo das mesmas. Porém quando ele parece chegar no ponto-chave, raízes sociais/emocionais e a profunda desconfiança entre as pessoas, ele tangencia o tema e se desloca para outra investigação. Parece-lhe faltar ferramentas das ciências sociais ou outras combinações teóricas.
O que lhe resta no fim é um cenário mais simplista associando crises econômicas (ou mesmo uma crise da sociedade "capitalista") à crise das democracias. Ou seja, isso acaba nos levando a relações que associam a democracia liberal (pelo menos como uma ideia de modelo de regime de governo) a um sistema capitalista que, nessa visão, está falido. Logo, a democracia liberal seria um erro e seria preciso substituí-la. E aí está o germe do problema, pois ao invés de entender o problema de maneira mais complexa e chegar à conclusão de que a solução para as crises atuais é mais democracia, muitos chegam à conclusão que é preciso menos democracia. E processos iliberais como o do governo turco ou mesmo a ideia absurda de uma democracia chinesa surgem como "criativas" quando na verdade são processos de autocratização.
Przeworski define democracia como "um arranjo político em que as pessoas escolhem governos por meio de eleições e têm uma possibilidade razoável de remover governos incumbentes que não gostam". É uma definição, como ele mesmo define, minimalista. No entanto, sua abordagem minimalista ignora a complexidade das variáveis sociais em jogo, oferecendo portanto um diagnóstico míope das crises democráticas. Definir democracia por meio de seu processo eleitoral ignora os processos complexos que emergem quando vemos as dinâmicas entre Estado, mercado e comunidade, pior ainda quando vemos fenômenos novos como a emergência de uma sociedade-em-rede.
Outros autores, como Levitsky e Mounk, e mesmo Harari, até conseguem identificar elementos que vão além do economicismo e que tocam paradoxos culturais, identitários, em meio a uma profusão tecnológica. Porém, nenhum deles consegue superar a ideia de que para salvar os valores democráticos seria necessário uma nova narrativa que explique e "venda" a ideia de uma sociedade-em-rede aberta, inclusiva e próspera. Em tese, a democracia não deveria prometer nenhum futuro próximo, nenhuma utopia ou ideologia, mas simplesmente um modo de operar num mundo em sociedade onde as pessoas possam buscar viver suas vidas em comunidade da maneira que melhor entenderem. E, no caso, o grande trabalho agora seria o de um resgate do capital social e um enfrentamento às ondas de autocratização e para isso seria preciso redobrar a aposta na democracia.
Conclusão
A análise integrada das reflexões de Offe e Fukuyama, colocando luz sobre Przeworski, Levitsky, Mounk e Harari, revela que a confiança e o capital social são elementos centrais para a resiliência das democracias modernas. A reconstrução da confiança nas instituições e entre os cidadãos exige um compromisso com a transparência, a justiça e a participação ativa de todos os setores da sociedade.
Além disso, é fundamental reconhecer que a democracia é um processo dinâmico que deve se adaptar às mudanças sociais e econômicas. A promoção de um diálogo aberto e inclusivo, a valorização da diversidade e a busca por soluções colaborativas são caminhos promissores para fortalecer nossas instituições democráticas e garantir um futuro mais justo e próspero.
Os desafios enfrentados pelas democracias modernas são complexos e multifacetados, mas não insuperáveis. É preciso que a gente supere visões de mundo que nos prendem a diagnósticos antigos. Me parece ser inconcebível continuar discutindo e polarizando o ambiente por meio de uma visão que não incorpora a complexidade da sociedade e reduz tudo à modelagem econômica. Talvez o nó da despolarização comece por aí, por essa revisão do modo de pensar que já está encrustado em nossas mentes. Quem sabe?
Obrigado Diogo por mais um excelente e objetivo artigo!