Por que não há uma utopia democrática
A “utopia” democrática não vem depois de alguma coisa
Procurei, mas não achei um só romance “utópico” do ponto de vista da democracia (ainda que a democracia não seja uma utopia e toda utopia seja uma distopia).
Mas falo de um livro de ficção que antevisse como seria uma sociedade onde a democracia fosse não apenas regime político, mas também modo-de-vida (ou de convivência social; ou seja, onde a democracia não fosse apenas a regra do jogo, mas o jogo).
A coisa mais parecida com isso está no passado: são as tentativas precárias e incertas de reconstrução da vida em Atenas nos trinta anos de relativa paz do século 5, entre o fim das guerras com os persas e o início da guerra com os espartanos (462-431 a. C.). Não é curioso?
As utopias clássicas também são, não-raro, distópicas (como as de More, de Campanella, de Bacon, de Marx, de Morris, de Wells, de Clark) ou retrópicas (como a República de Platão).
Eis a lista incompleta (com nomes das obras, autores e datas), mas exemplificativa:
A Utopia de Thomas More (1516)
A Cidade do Sol de Tommaso Campanella (1602)
A Nova Atlântida de Francis Bacon (1624)
O Capital de Karl Marx (1848)
Notícias de Lugar Nenhum de William Morris (1890)
A Utopia Moderna de H. G. Wells (1905)
O Fim da Infância de Arthur Clark (1953)
A de Marx, em particular, ao propor uma condição final da humanidade sem Estado – o que, para ele, significava sem política – como notou Hannah Arendt (c. 1950) – não é de maneira alguma utópica: só é pavorosa.
Não há também uma saga filmada sobre isso. Alguém conhece um filme ou série de TV sobre uma futura sociedade democrática?
Não há um Star No-Wars (Sem-Guerra nas Estrelas), não há um Conto Sem-Aias (só com amigos e amigas que pratiquem a ajuda-mútua na concepção e criação dos filhos, nas tarefas cotidianas e – por que não? – na comum-administração das suas cidades).
Não há uma trilogia dedicada à Sintonia, à Sinergia e à Simbiose (meio simétrica à trilogia Divergente, Insurgente, Convergente: aliás, são estranhas e imperfeitas as palavras – se é que existem – para designar agentes “sintonizantes”, “sinergizantes”, “simbiotizantes”).
Não há um Game of Thrones sem tronos e sem reinos, onde a ênfase não está nas lutas pelo poder e sim no próprio game (do tipo Amar e Brincar como fundamentos esquecidos do humano, para lembrar o saudoso Maturana).
Ninguém faz uma série desse tipo onde a temática principal seja a democracia. Tudo no cinema e na TV gira em torno da repetição de padrões autocráticos da civilização patriarcal, suas tradições ancestrais, seus símbolos arcaicos, seus papéis hierárquicos, seus valores e, inclusive, seus artefatos: reis e rainhas, monarquias absolutistas, guerra, mutilação, tortura e morte; ordem, hierarquia, disciplina, obediência, fidelidade, pactos de sangue, pureza genética e vínculos parentais (nas primeiras temporadas de Game of Thrones uma das palavras mais frequentes foi “bastardo”); tronos, coroas, cetros, bastões e espadas.
Como esperar que um jovem, hoje na faixa de 20 a 30 anos, que passou toda sua vida sendo inoculado com esses vírus (sim, os padrões são malwares, programas maliciosos), possa entender a valorizar a democracia como uma brecha aberta na cultura patriarcal? Como esperar que ele possa assimilar o valor da liberdade como liberdade de ser infiel, de andar sem rumo, ao léu, abandonado ao fluxo interativo da convivência social, sem um propósito, um objetivo, uma utopia (entendendo que a distopia dos White Walkers é tão maléfica quanto qualquer utopia dos reinantes de Westeros)?
A pergunta é: por que ninguém escreve uma coisa assim? Por que não aparece um George Martin democrata escrevendo, em vez de uma fantasia épica, como As Crônicas de Gelo e Fogo, devaneios líricos?
Sim, exercícios líricos, onde no lugar das guerras pela posse de um trono de ferro ocorrem miríades de empreendimentos colaborativos, construtivos, investigativos ou, simplesmente, manifestações singulares da livre sexualidade e da imaginação criadoras?
Quem conseguir responder essa pergunta entenderá mais profundamente o drama milenar da democracia numa civilização patriarcal.
Parece claro que a democracia não pode mesmo ter utopia. A “utopia” democrática não vem depois de alguma coisa. Não é o fim dos carecimentos e limitações, mas um modo de lidar com eles (hoje, não amanhã), se é que vocês estão me entendendo.
Ou seja, a alternativa é aprender democracia pelo avesso, estudando - em especial - as distopias: onde ficam mais claros do que nas utopias clássicas, os padrões autocráticos. Se alguém consegue identificar um padrão autocrático que se replica em outras regiões do tempo, aprenderá democracia num sentido “emocionalmente” profundo (que não pode ser captado pela leitura de textos teóricos defendendo a democracia).
Para tanto fizemos uma nova lista de pouco mais de uma dezena de romances distópicos do ponto de vista da democracia (os de Jerome, Zamyatin, Huxley, Koestler, Orwell, Bradbury, Golding, Soljenítsin, Atwood e Wallace).
O objetivo foi estruturar um programa de reconhecimento de padrões autocráticos para aprender democracia pelo avesso.
Eis a lista completa (com os nomes das obras, respectivos autores e datas de publicação):
A Nova Utopia de Jerome K. Jerome (1891)
Nós de Yevgeny Zamyatin (1921)
Admirável Mundo Novo de Aldous Huxley (1932)
O Zero e o Infinito (Dakness at Noon) de Arthur Koestler (1941)
A Revolução dos Bichos (Animal Farm) de George Orwell (1945)
1984 de George Orwell (1949)
Fahrenheit 451 de Ray Bradbury (1953)
O Senhor das Moscas de William Golding (1954)
Um dia na vida de Ivan Denisovich de Alexander Soljenítsin (1962)
O Conto da Aia de Margaret Atwood (1985)
Star Wars: Manual do Império de Daniel Wallace (2015)
Como é difícil ler tudo isso sozinho sem desanimar, organizamos um Clube de Leitura das Distopias. E criamos e treinamos um Agente de Inteligência Artificial chamado NEXOS abastecido com todos esses livros e com uma lista, relativamente exaustiva, de padrões autocráticos.
Padrões são caminhos sulcados no espaço-tempo dos fluxos que conseguem se replicar em outras regiões do espaço e do tempo, são modos recorrentes de interagir, de ver e de interpretar, comportamentos compatíveis com algumas ideias-matrizes: no caso de padrões autocráticos, essas ideias são míticas, sacerdotais e hierárquicas.
Então, se alguém estiver com dificuldade de garimpar padrões autocráticos nas obras listadas acima, basta perguntar ao NEXOS. E depois conversar com pessoas que estão na mesma jornada (isso é o mais importante: um clube alterdidático).
Atenção! Essa não é uma iniciativa literária diletante. Conhecendo os padrões autocráticos evidenciados nas distopias podemos perceber sua presença na nossa vida cotidiana e na política dos países que realmente existem hoje: que nos afetam e que são perigos mortais para a democracia. Por exemplo, podemos perceber como o MAGA de Donald Trump está levando os Estados Unidos para algum lugar parecido com aquela Gileade de O Conto da Aia de Margaret Atwood (uma teocracia totalitária e patriarcal). Para quê. Ora… para que esses padrões não se repitam. Em vez de MAGA - Make America Great Again, MAFA - Make Atwood Fiction Again.
Clique no link abaixo para ver como funcionará o clube. Se você achar que vale a pena faça sua inscrição (mas não espere muito, pois as turmas são bem limitadas).
Como é o Clube de Leitura das Distopias.