Por que precisamos de comunidades políticas democráticas
Do ponto de vista da democracia como modo-de-vida, não há como alguém exercer o papel de agente democrático sem comunidade política. Sem a prática da continuada conversação democrática, a democracia fenece. Sem ambientes favoráveis à realização de projetos comuns democratizantes, a partir da congruência de desejos dos interagentes, a democracia falece.
É em comunidades políticas que pode se exercer a prática da continuada e recorrente conversação democrática, que gera circularidades inerentes, dando nascimento a novas culturas políticas, usinando padrões de apreensão do mundo e de ação sobre o mundo capazes de se replicar. É em comunidades políticas que se pode realizar projetos comuns democratizantes - e isso define a própria ideia de comunidade política democrática.
Uma vez experimentado por um número suficiente de seres humanos, um modo-de-vida pode tornar-se um padrão que se replica, inspirando agires (comportamentos) conexos em outras regiões do tempo. O que se replica são caminhos sulcados no espaço-tempo dos fluxos, modos recorrentes de interagir, de ver e de interpretar.
No caso da autocracia, comportamentos compatíveis com ideias míticas, sacerdotais e hierárquicas, de ordem como sentido da política – e de luta contra inimigos (guerra ou política como continuação da guerra por outros meios) para implantar essa ordem – que conformam padrões autocráticos.
No caso da democracia, comportamentos compatíveis com ideias de liberdade como sentido da política – de que a nossa liberdade não termina, mas começa onde começa a liberdade do outro (quer dizer, de que ninguém pode ser livre sozinho) –, com ideias de autonomia, com ideias colaborativas, de auto-organização e de rede (mais distribuída do que centralizada), que conformam padrões democráticos. Mas nada disso é possível sem comunidade política.
Partidos políticos tradicionais (hierárquicos) configuraram ambientes de reprodução de padrões mais autocráticos do que democráticos. Líderes conduzindo grandes massas compostas por indivíduos, também reproduziram padrões mais autocráticos do que democráticos. As chamadas "bolhas" que surgiram com as mídias sociais e os programas de mensagens, espécies de "partidos digitais" compostos por seguidores de líderes, igualmente estão reproduzindo padrões mais autocráticos do que democráticos. Só comunidades políticas democráticas (redes mais distribuídas do que centralizadas) poderão gerar padrões mais democráticos do que autocráticos.
Os democratas que tomam a democracia não apenas como as regras do jogo, mas como o próprio jogo; quer dizer, não apenas como modo político de administração do Estado, mas também como modo de vida (experimentando a democracia em não-países), não têm outro caminho a não ser articular comunidades políticas. Essas comunidades podem ser grandes ou pequenas – na maioria dos casos, sobretudo no começo, tendem a ser pequenas. Podem ser presenciais ou virtuais – em geral, nos tempos que correm, serão virtuais. O que importa é a sua estrutura ou padrão de organização (distribuído) e sua dinâmica ou modo de funcionamento (amistoso ou não-adversarial).
Nota
Juntamente com vários amigos e amigas, depois de uma longa trajetória investigativa e reflexiva e de vários ensaios de articulação de redes para vários propósitos nos últimos quinze anos, formamos algumas comunidades desse tipo chamando-as de Casas da Democracia. Mas o nome pouco importa. As pessoas podem chamá-las como quiserem. Podem encará-las como sua pólis, micropólis ou “pólis paralelas” - como fez Václav Benda (1978) no contexto do regime pós-totalitário da Tchecoslováquia. Alias, a polis onde nasceu a primeira democracia não era a cidade-Estado (de Atenas) e sim a comunidade (koinonia) política. Como notou Hannah Arendt (1958) em A Condição Humana, “a pólis não era Atenas e sim os atenienses”. A comunidade política democrática é uma nova “entidade” que surge quando as pessoas passam a viver a sua convivência. É assim que nasce e renasce, continua ou intermitentemente, a democracia como modo-de-vida.