Grande parte dessa discussão, sobre se Biden ainda tem condições de presidir os Estados Unidos, independentemente dos achaques da velhice que o alcançam, está baseada numa particular concepção do que é um presidente. Esse é um problema do presidencialismo americano que a democracia não conseguiu resolver.
Na cabeça de muitos americanos, de hoje e do passado, o presidente da república é quase um substituto “republicano” para um monarca (no estilo meio absolutista), um chefe militar (na ponta dos cascos para comandar e impor pela força sua vontade) ou um CEO (do tipo daqueles que mandam em tudo).
Entre as dez democracias mais bem colocadas no ranking da The Economist Intelligence Unit (Noruega, Nova Zelândia, Islândia, Suécia, Finlândia, Dinamarca, Irlanda, Suíça, Holanda e Taiwan) não há nem uma com sistema de governo presidencialista e a maioria delas não é república.
O problema dos EUA, no fundo, é o que eles lá entenderam e continuam entendendo por república. O modelo dos Founding Fathers e seus sucessores foi mais inspirado pela República Romana (a rigor, uma oligarquia) do que pela polis ateniense (uma koinonia - comunidade - política democrática). É curioso porque, mesmo sendo uma oligarquia, a República Romana não tinha chefes com característas monocráticas (basta ver como o Senado reagiu à ascensão de Júlio Cesar).
Hoje grande parte dos integrantes do Partido Republicano nos Estados Unidos (sobretudo as frações que foram capturadas pelo trumpismo) declara abertamente que seu regime é uma república, não uma democracia, opondo uma coisa à outra.
Nos EUA a democracia brotou da sociedade, do network da Filadélfia (que redigiu a várias mãos a Declaração de Independência), do associativismo, da cooperação e da confiança ampliadas socialmente (sobretudo na Nova Inglaterra), daquilo que Tocqueville chamou de "governo civil" e que Jane Jacobs, mais de 120 anos depois, definiu como 'capital social'. Nenhuma sociedade acumulou tanto - e tão rapidamente - capital social do que a americana dos séculos 18 e 19, capital que depois foi sendo dilapidado pela centralização governamental em Washington, pela recorrência aos tribunais para resolver qualquer dilema banal da ação coletiva, pelo complexo científico-industrial-militar e pelas guerras.
Ademais há um mito de que a democracia americana foi a primeira democracia (e a melhor) do mundo. Depois da reinvenção prática da democracia na Inglaterra (na resistência do parlamento inglês ao poder despótico de Carlos I) e do escrito refundante de Spinoza (1670), no último capítulo do seu Tratado Teológico-Político, que recupera a “tradição” democrática originária ateniense ao tomar o sentido da política como a liberdade e não a ordem, ao contrário de Hobbes (1651), tivemos uma onda (a rigor pré-democrática) de surgimento de cerca de 20 regimes eleitorais, que vai - segundo o V-Dem (da Universidade de Gotemburgo) - de 1790, na Inglaterra e na Irlanda, passando pela França em 1792, pelos EUA, Bélgica e Holanda em 1796, até chegar à Suiça em 1848. Um ano depois, entretanto, a Suíça desponta como a primeira democracia do planeta na modernidade (e já surge como democracia liberal). Inaugura-se aí a primeira onda de democratização propriamente dita, com a instalação de regimes democráticos em 16 países. Os EUA são parceiros tardios nessa onda, pois só viraram democracia eleitoral em 1921 (e liberal em 1969).
No ranking da The Economist 2023, os EUA não são mais, há muito tempo, uma full democracy e sim uma flawed democracy, ocupando o vigésimo-nono lugar na listagem mundial. O que é notável na (flawed) democracia americana, veio mais da sociedade do que do Estado. E é essa cultura democrática da sociedade americana, essa sua resiliência em conservar um modo-de-vida democrático, que pode agora impedir a volta de um líder trapaceiro com característas despóticas, como Donald Trump.