Profissionais lulopetistas x amadores bolsonaristas
Um retrato da polarização entre dois populismos
Estamos ficando loucos com essa polarização que obriga os democratas a omitirem suas posições críticas (ao populismo no governo) para "não dar munição ao inimigo" (o populismo fora do governo).
Volta e meia se ouve. “Não critique o governo Lula senão o Bolsonaro volta”. Ué! Mas ele já está preso e será condenado. “Então volta o Eduardo”. Mas ele está "exilado" porque se voltar será preso. “Então o Flávio assume. Ou o Renan. Ou a Laura, quando alcançar a maioridade”. Entendido. Ficaremos ainda uns 60 anos sem poder criticar qualquer governo do PT.
Quando um ambiente assim se configura é sinal de que já vivemos em um 'estado de guerra' civil fria. É assim que deve ser entendida a conjuntura brasileira nos tempos que correm.
Eis um retrato da nossa situação atual, com o país esgarçado pela polarização entre dois populismos. Uma chusma de amadores (bolsonaristas) que não gostam de democracia denunciando uma inexistente ditadura contra uma organização de profissionais hegemonistas (lulopetistas) que se proclamam falsamente como salvadores da democracia. E, pegando uma carona nos ataques de Trump, agora também como salvadores da soberania.
O mais insólito de tudo nessa história é pessoas que acusam o regime político brasileiro de ter virado uma ditadura não gostarem de democracia. Se gostassem não admirariam a ditadura militar de 1964-1984. Na verdade o que essas pessoas querem é usufruir das liberdades proporcionadas por um regime democrático para chegar ao poder e então abolir ou restringir as liberdades democráticas, como estão fazendo, entre outros, seus aliados Orbán na Hungria, Erdogan da Turquia, Bukele em El Salvador e, agora, Trump nos EUA.
Isso, porém, não significa que seus inimigos lulopetistas que estão no governo no Brasil sejam democratas. Se fossem não se alinhariam a Putin na Rússia, Xi Jinping na China, Khamenei no Irã, Lourenço em Angola, Canel em Cuba, Ortega na Nicarágua e Maduro na Venezuela - que são, todos, ditadores. O fato dos seus inimigos serem autocráticos e iliberais não transforma alguém em democrático e liberal. Boa parte dos opositores à ditadura militar no Brasil não era democrática só porque lutava contra uma ditadura, posto que almejava instalar a sua própria ditadura. Na primeira guerra fria (1962-1988), os alinhados à União Soviética que combatiam as ditaduras militares na América Latina e alhures eram, via de regra, autocráticos e iliberais.
Com as revelações dos conteúdos do telefone celular de Bolsonaro (e do pastor Malafaia, que ainda vão vir à luz), lança-se uma imensa cortina de fumaça sobre o que está realmente em jogo. Isso só foi possível, é claro, porque Lula e o PT, profissionais do jogo populista eleitoral, estão enfrentando amadores. Nunca se viu tanto amadorismo. Os líderes mais importantes do populismo de direita, que querem ser oposição ao governo, registram todas as suas conspirações nos próprios celulares e arquivam nas suas próprias casas ou escritórios cópias em papel de documentos sigilosos. Até um neófito de um órgão de inteligência de Burundi sabe que não se pode fazer isso. Mas eles fazem. Porque são amadores.
Seria previsível a disputa fratricida que se seguiu a essa patacoada no entourage de Bolsonaro. Lembra os personagens e a trama do filme Era uma vez em Londres de Simon Rumley (2019). Os Bolsonaro são uma espécie de gangue do baixo-astral, constituída com base em familismo amoral (uma proto-máfia), não propriamente uma força política estruturada em torno de um projeto, um programa, com uma ideologia. Jair Bolsonaro sempre foi um oportunista-eleitoreiro, de viés autoritário, que descobriu que dizer que ‘bandido bom é bandido morto’ dava votos no Rio de Janeiro. A ideologia - introduzida, em grande parte, por Olavo de Carvalho, por altos oficiais anticomunistas reformados do Clube Militar e pelos bispos e pastores evangélicos messiânicos (e vigaristas) - veio depois, quando o hegemonismo petista (e a corrupção sistêmica com motivos estratégicos de poder instalada pelos dirigentes do PT nos governos Lula e Dilma) irritou as pessoas a ponto de ensejar o surgimento de uma corrente antissistema sintonizada com a ascensão do nacional-populismo, dito de extrema-direita, em todo mundo, sobretudo a partir de meados da segunda década do presente século.
Não é de estranhar o que está acontecendo agora. O objetivo da famiglia é hoje apenas sobreviver para tentar se manter na liderança da oposição antidemocrática até 2030. As demais forças antipetistas, sobretudo as que querem continuar existindo como players válidos do processo democrático, estão diante de uma bifurcação: ou se desvencilham imediatamente da camorra golpista - composta por Jair Bolsonaro, seus filhos e comparsas mais próximos - ou vão naufragar junto com ela.
Os amadores bolsonaristas não têm a menor chance de sair vitoriosos nesse embate. Por isso, se Lula perder a eleição de 2026, não perderá para o bolsonarismo e sim para o antipetismo. Em condições normais Lula perderia. Mas quem disse que as condições serão normais? Agora já não são mais.
Para começar a sair desse imbroglio seria necessário que uma força política que quisesse se apresentar como uma alternativa democrática (não-populista) jogasse fora no lixo esse esquema interpretativo direita x esquerda. Não é a direita populista reacionária disfarçada de conservadora que vai nos livrar da esquerda populista revolucionária travestida de progressista. É a democracia. Somente a democracia liberal, inovadora e reformista, pode fazer isso.
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Se não estamos numa ditadura (proto-ditadura, que seja), então não sei onde estamos. Não é necessário que seja explícita, nem que haja imagens dos líderes expostas em gigantescas bandeiras, tampouco que algum desses expoentes, calvos ou desprovidos de artelhos, anfíbios ou roedores se apresente de uniforme caqui. É nos detalhes que mora o diabo, já dizia minha avó.