Há muita confusão na praça sobre as diferenças entre público e privado. Para começar é preciso dizer que público não é uma condição de partida. Não adianta escrever nas leis que uma coisa é pública. Só é público, de facto, o que foi publicizado. Uma praça em uma cidade é legalmente pública, mas só será publicizada se as pessoas a ocuparem e a modificarem a partir da sua interação gerando socialmente um espaço comum (commons) ao seu feitio.
Em segundo lugar, é necessário compreender que o público sempre se forma por emergência. A opinião pública não é a soma das opiniões privadas da maioria dos cidadãos e sim a opinião que resulta da interação das suas opiniões originalmente privadas. Do contrário não seria necessário promover eleições: bastaria contratar um instituto para fazer uma pesquisa censitária (de casa em casa), recolhendo e totalizando as opiniões do entrevistados.
Em terceiro lugar, deveria ser desnecessário dizer, que o conceito de público só faz sentido em democracias. A democracia é coetânea ao espaço público. Em tiranias, não há processos de publicização (onde são proibidos) e o próprio Estado, a rigor, não é um ente público (posto que foi ou está privatizado pelo autocrata). E aqui deve-se explicitar uma novidade subsumida: o processo de publicização é o mesmo processo de democratização!
Em quarto lugar, é bom observar que público e privado são presididos por “lógicas” distintas. O que vale em ambientes públicos não vale da mesma maneira em ambientes privados.
Vamos dar um exemplo de uma organização originalmente privada que adquiriu características de uma entidade pública e sobre a qual, agora, trava-se intensa discussão: o X (ex-Twitter).
O X, assim como outras mídias sociais, é uma empresa privada que acabou adquirindo as funções de uma utilidade pública (uma "social facility"). Não apenas pelos seus quase trezentos milhões de usuários, mas pela sua diversidade (política e social, cultural e geográfica, de gênero e etnia, de condição física e psíquica etc.), converteu-se em um espelho de uma instância pública global.
O X é aberto. Não exige que seus usuários concordem com um objetivo político ou uma narrativa ideológica, esposem uma religião ou abracem uma filosofia. Não tem um propósito ao qual seus membros devam aderir como condição para dele participar. Portanto, não faz um recorte prévio de quem pode ou não pode nele entrar. Qualquer pessoa no X pode bloquear um usuário: para si, mas não para os outros.
Eis o sentido da liberdade de expressão no X. Se, no uso dessa liberdade, um usuário viola as leis, deve ser processado observando-se o devido processo legal vigente nas democracias. Claro que tudo isso só vale - como já dito acima - para democracias. Repetindo. Em ditaduras não há propriamente espaço público e o próprio Estado não é um ente público.
Vamos tomar agora o exemplo de uma organização (lato sensu) privada que continua privada: um grupo de WhatsApp (que não é bem uma mídia social e sim um programa de mensagens) constituído com uma finalidade (que pode ser fazer uma escala de pais para conduzir os filhos de seus integrantes à escola, ou articular politicamente pessoas para defender uma proposta). Esse não é um espaço público e sim privado. Mesmo que seja aberto à entrada de novos membros, tem sempre um propósito. Nele podem até entrar, mas não deveriam permanecer, os que não estão de acordo com o seu propósito.
Como dissemos, as regras que valem para espaços públicos não são as mesmas que valem para espaços privados. Num espaço público não se pode exigir das pessoas que pensem de forma consonante com as demais. Num espaço privado, mesmo coletivo, produtores sistemáticos de dissonâncias podem ser advertidos pelos demais de que seu comportamento não está ajudando o propósito daquela particular coletividade (privada).
Nada disso é ruim. Se as pessoas não pudessem fazer política privada (politics) para influenciar a política pública (policy), não haveria democracia. Por isso partidos, organizações, movimentos e articulações políticas, grupos devocionais ou confessionais, sindicatos e corporações em geral et coetera, não são e não podem ser públicos. Se fossem seriam engolidos ou enquadrados pelo Estado, ou pelo partido que se apropriou e se fundiu ao Estado, como ocorre nas tiranias.
Esta nota foi redigida por Augusto de Franco, do staff de Inteligência Democrática.
Uma reflexão das mais importantes para pensar o agora e o ágora.
A percepção dos agentes do direito como o Xandão é que público é só aquilo que é permitido pelo Estado.