Há uma sanha de regulamentação das chamadas redes sociais. Neste artigo mostro por que está tudo (ou quase tudo) errado.
1 - Em primeiro lugar, não são redes sociais (social networks) e sim mídias sociais (social media). Só no Brasil se confunde tanto as duas coisas. Redes sociais são pessoas interagindo por qualquer meio, não plataformas, aplicativos, programas, tecnologias. Redes sociais não são um nome para um novo tipo de organização e sim um padrão de organização (caracterizado por topologias mais distribuídas do que centralizadas). Você quer entender essas diferenças? Vai aqui uma bibliografia básica (1).
2 - Em segundo lugar, as regulamentações propostas pelos que querem estabelecer, desde o século passado, o "controle social da mídia", não afetam apenas as mídias sociais e sim toda a internet. E o controle social que preconizam acaba sendo, na prática, um controle partidário-governamental (na medida em que qualquer órgão regulador inventado será vulnerável ao processo de conquista de hegemonia efetivado por parte de militantes e simpatizantes de partidos ou movimentos que praticam a política como guerra, quer dizer, como construção contínua de inimigos, na base do "nós contra eles"). Você quer entender por que a internet como um todo será afetada e não apenas as mídias sociais? Acompanhe os posts do @ayubio, que entende do assunto (2). Vale a pena ler também a avaliação do Ronaldo Lemos sobre a regulamentação aprovada pelo STF (3).
3 - Em terceiro lugar, as mídias sociais poderiam ser excelentes instrumentos de netweaving (ou seja, de articulação e animação de verdadeiras redes sociais), mas infelizmente não são. Seus algoritmos caixa preta acabam induzindo o broadcasting, a disseminação de mensagens um-para-muitos que estimula seus usuários a adquirir cada mais seguidores - em vez de interagir (que é aceitar ser modificado pelo outro-imprevisível, na interação fortuita) - ficando sujeitos à doença da rede que chamamos de fama e não leva à formação de redes humanas, redes de pessoas interagindo em um padrão mais distribuído do que centralizado (que são as verdadeiras redes sociais). Se você quiser saber mais sobre netweaving, pesquise (4).
4 - Em quarto lugar, os modelos de negócios das grandes plataformas de mídias sociais estimulam a discórdia e não a concórdia, o dissenso e não o consenso, a desavença e não o encontro, configurando ambientes favoráveis à luta de facções e tribos pelo predomínio ou pela supremacia no novo espaço público digital e não à busca coletiva de soluções compartilhadas para seus problemas, à realização de projetos comuns que partam da congruência de seus desejos; ou, mesmo, à simples convivência amistosa (ou não-adversarial). A preocupação com isso é legítima, ou seja, não está errada. O que está errado aqui são as soluções repressivas frequentemente apresentadas por motivos políticos.
5 - Em quinto lugar, toda regulamentação marcada pelo imperativo de alterar a correlação de forças a favor de um projeto político de poder acaba desaguando no processo eleitoral. Na conjuntura atual brasileira os promotores de regulamentações autoritárias estão preocupados precipuamente em reeleger Lula da Silva em 2026 e então estão procurando um meio de usar algum tipo especioso de regulamentação para proibir que as campanhas de oposição: a) falem da história de corrupção do PT; b) associem a corrupção do INSS e outros escândalos ao incumbente e seus aliados ou seguidores; c) tragam à tona a aliança histórica de Lula e do PT com ditaduras (como Cuba, Venezuela, Nicarágua, Angola) e denunciem a aproximação de Lula com Putin, sua admiração por Xi Jinping e sua simpatia pelos teocratas iranianos e por outros autocratas ou populistas alinhados no propósito de destruir as democracias liberais. É improvável que essa manobra suja - "eu fico com as TVs e vocês ficam sem as mídias sociais" - funcione eleitoralmente, pelos motivos apresentados no tópico abaixo.
6 - Em sexto lugar, é uma ilusão pensar que coibindo o uso das mídias sociais por parte dos nacional-populistas, o problema da existência de uma extrema-direita com ampla base eleitoral (e social) será resolvido. O emprego abusivo e destrutivo das mídias sociais é parte de um movimento de caráter revolucionário (ainda que para trás, quer dizer, reacionário) que está presente no mundo todo. Não adianta demonizar os trilionários malvadões das bigtechs e seus algoritmos malignos, pois a apropriação e o uso político desses meios não obedece a nenhuma coordenação centralizada: é um movimento difuso ou distribuído que acaba arrastando todos aqueles que não estão satisfeitos com "o sistema", com a maneira como esse sistema (seja o que entendam por isso) está organizado e funciona. Ademais os tecnofeudalistas provedores da infraestrutura e dos algoritmos das grandes plataformas não vão se abalar muito com um traque soltado pela suprema corte brasileira: continuarão funcionando e será impossível proibir o uso de VPNs e outros meios de desobedecer e burlar as proibições a não ser que o país esteja disposto a se transformar em uma ditadura. Tais proibições só aumentarão e espalharão a revolta. No Brasil, em particular, o bolsonarismo tem de ser enfrentado pela democracia. Não por medidas antidemocráticas (como uma regulamentação autoritária que vise impedir a paridade de armas em disputas eleitorais e outras). Nossa democracia deve ser capaz de resistir ao nacional-populismo (bolsonarista) e ao neopopulismo (lulopetista) com mais democracia, não com menos. Do contrário, o regime político brasileiro se autocratizará.
NOTAS
(1) Uma bibliografia básica de referência sobre redes:
1961 Jane Jacobs: “Morte e vida das cidades americanas”
1964 Paul Baran: “On distributed communications”
1993 Humberto Maturana (com Gerda Verden-Zöller): “Amar e brincar: fundamentos esquecidos do humano”
1993 Robert Putnam: “Making democracy work”
1994 Pierre Lévy: “A inteligência coletiva”
1996 Manuel Castells: “The rise of network society”
1997 Robert Axelrod: “A complexidade da cooperação: modelos agent-based de competição e colaboração
1999 Deborah Gordon: “Ants at work”
2002 Albert Barabasi: “Linked”
2003 Duncan Watts: “Six degrees”
2003 Steven Strogatz: “Sync”
2006 Ori Brafman & Rod Beckstrom: “The starfish and the spider”
2006 Albert Barabasi, Mark Newman & Duncan Watts: “The structure and dynamics of networks”
2009 Nicholas Christakis: “Connected”
2010 Albert Barabasi: “Bursts”
2017 Augusto de Franco: “O que não são redes sociais”
2018 Deborah Gordon: “Local links run the world”
2023 Deborah Gordon: “The ecology of collective behavior”
2024 Paulina Szyzdek: “A ciência das redes: da teoria às novas realidades”
(2) Post de @ayubio no X (26/06/2025). “Quer saber o que estão fazendo com nossa internet? Me acompanhe nesse raciocínio. Se entrarmos numa cozinha e encontrarmos ovos, farinha de trigo, manteiga, cenoura, calda de chocolate, é seguro deduzir que alguém fará um bolo de cenoura. Agora observemos alguns dos ingredientes recentes diante da internet brasileira:
1) STF envia ordens judiciais para que rede social X bloqueie contas de usuários específicos, mas sem dizer a eles que foi por determinação da justiça. Para que mentisse na mensagem de banimento alegando que foi por uma decisão unilateral do X. A rede social vaza as decisões, publica um dossiê e sai do país temendo que seus executivos sejam presos. https://x.com/AlexandreFiles
2) STF determina multa de R$150 mil para quem usasse a rede social X durante a proibição nacional de uso dessa rede social. Além da multa ser desproporcional (dirigir bêbado é só R$3k), é ilegal uma ordem judicial prever punição para quem não é réu no processo. Até a OAB apontou essa ilegalidade. https://g1.globo.com/politica/politico/noticia/2024/08/31/oab-pede-que-moraes-reconsidere-decisao-de-multar-usuarios-do-x-por-uso-de-vpn.ghtml
3) STF já determinou que Apple e Google removessem da loja de aplicativos todos os apps que pudessem ser usados para uso de VPN de todos os aparelhos usados no Brasil.
4) STJ definiu que decisões de juízes brasileiros de remoção de conteúdo têm poder internacional. Que se decidem que algum conteúdo seja removido, que ele seja não apenas para brasileiros e sim para todos usuários de todos os países do mundo, mesmo que a empresa seja estrangeira, o servidor estrangeiro e o usuário estrangeiro. Nem a ONU clama para si tal poder. https://stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/2024/27112024-Decisao-da-Justica-brasileira-que-manda-retirar-conteudo-da-internet-pode-ter-efeitos-internacionais.aspx
5) No PL 2630/20 a Anatel se ofereceu para atuar como um Ministério da Verdade, lendo conteúdo e julgando o que é verdade ou mentira e se classificado como mentira, remover a postagem. O corpo técnico da agência é composto engenheiros em telecomunicações. https://camara.leg.br/noticias/1062561-presidente-da-anatel-defende-que-agencia-seja-orgao-regulador-e-fiscalizador-das-plataformas-digitais/
6) STJ rasga Marco Civil da Internet e apesar da lei determinar que empresas de conteúdo tem que guardar no log a porta utilizada para possibilitar a identificação de usuários que cometem crimes, o tribunal manda o ISP se virar e identificar quem foi o autor de um crime mesmo sem essa evidência forense. Ou seja, mesmo sendo tecnicamente impossível, o juiz manda o ISP dar teus pulos e ai dele se descumprir. https://conjur.com.br/2025-mai-28/provedor-de-internet-deve-identificar-usuario-acusado-de-ato-ilicito-decide-stj/
7) Anatel obtém acesso remoto a roteadores de borda e servidores de DNS para bloquear IPs e domínios por conta própria, mesmo que a decisão judicial no caso da Amazon que vimos acima ter mostrado que ela tem nenhum lastro legal para bloquear sites no Brasil. Esse mecanismo pode funcionar como um botão central de censura. https://telesintese.com.br/anatel-quer-fazer-lacre-virtual-de-caixinhas-piratas-de-iptv/
8) De forma pró-ativa, a Anatel tem preparado uma política que ela chama de fair share, que em bom português é o pedágio da internet. Sob a falsa alegação que a internet brasileira está prestes a entrar num colapso, a agência age como uma corretora de valores ao criar uma taxa a ser cobrada das big techs para que elas possam enviar dados aos internautas brasileiros. Essa inovação foi tentada apenas na Coreia do Sul, onde a mensalidade da internet subiu, a qualidade dos vídeos da Netflix reduziu e Twitch encerrou operações no país por não conseguir arcar com o pedágio: https://mobiletime.com.br/noticias/12/02/2025/anatel-deveres-usuarios/
9) Anatel tenta bloquear nacionalmente a Amazon e MercadoLivre, mas foi impedida pelo judiciário por conta do artigo 19 do Marco Civil da Internet, que está sendo anulado em julgamento em curso no STF. Essa proteção cairá nos próximos dias e há chance da Anatel tentar de novo. https://tudocelular.com/mercado/noticias/n235984/justica-anatel-bloquear-site-amazon-brasil.html
10) Os endereços IP, os pontos de troca de tráfego (IX) e os domínios do http://Registro.br são controlados por uma entidade sem fins lucrativos chamado http://CGI.br, não pelo governo. Graças a eles, o Brasil tem o maior ponto de troca de tráfego DO MUNDO. O PL 4557/2024 pretende estatizar a operação da internet brasileira transferindo o controle dessa ONG para a Anatel, dando controle ao governo de toda essa infraestrutura: https://telesintese.com.br/projeto-propoe-anatel-como-supervisora-da-governanca-da-internet-brasileira/
11) Os juízes que estão julgando a anulação desse artigo do Marco Civil dizem em audiência admirar a internet chinesa, que é famosa pelo Great Firewall of China, onde é nacionalmente bloqueado o X, Facebook, Instagram, WhatsApp, Snapchat, Pinterest, Reddit, Discord, LinkedIn, Tumblr, Google, YouTube, Netflix, HBO Max, Hulu, Twitch, Telegram, Signal, Google Meet, The New York Times, BBC, Reuters, Bloomberg, ChatGPT, Yahoo!, DuckDuckGo e até a Wikipédia. https://reddit.com/r/InternetBrasil/comments/1l97d4j ao_anular_o_artigo_19_do_marco_civil_da_internet/
12) Apesar da constituição determinar que censura prévia é ilegal no Brasil e o código penal vedar que pessoas que não sejam réus num processo sejam alvo de punições no julgamento dele (afinal, não tiveram defesa), STF continua determinando o bloqueio de perfis inteiros de réus e seus familiares nas redes sociais. O X está recorrendo pedindo que apenas os posts considerados ilegais sejam removidos em vez dos perfis inteiros (e todos os posts), como determina a constituição. https://g1.globo.com/politica/noticia/2025/06/09/rede-social-x-recorre-da-decisao-de-moraes-para-bloqueio-da-conta-da-zambelli.ghtml
Então todos os ingredientes estão postos na mesa, muitos criados através de ilegalidades, não é irrazoável presumir que o bolo será sabor de censura e manipulação.
Será tentador para quem estiver com a caneta na mão, censurar conteúdos que incomodam seu projeto de poder, convicção (ou paixão) política, parceiros comerciais e cosmovisão.
Mesmo quem confia muito no governo atual deve temer pelo futuro da internet porque todo esse aparelho técnico e institucional montado, poderá ser usado por qualquer governo futuro”.
(3) Ronaldo Lemos (27/06/2025): Minha análise sobre a decisão do STF que mudou o Marco Civil (publicado originalmente no LinkedIn).
(4) Não se sabe bem onde surgiu pela primeira vez o termo ‘netweaving’ para designar genericamente articulação e animação de redes sociais. David de Ugarte alega que foi ele que inventou a palavra em 1999: “La palabra netweaving fue creada en 1999 por David de Ugarte para definir el objetivo de Piensa en Red. El término ni siquiera existía en los buscadores en aquella época, pero fue pronto consagrado por Juan Urrutia en La lógica de la abundancia, un largo artículo publicado en la revista Ekonomiaz en el que se planteaba por primera vez la lógica de la abundancia como principio ordenador de las redes distribuidas”. Mas essa alegação parece não ser verdadeira, de vez que ela – a palavra ‘netweaving’ – pode ser encontrada em um artigo de março de 1998: “Netweaving alternative futures – Information technocracy or communicative community?” de Tony Stevenson. O termo foi desenvolvido e largamente empregado por mim, a partir de 2008, com outro sentido, afinal consolidado em Fluzz (2011), sobretudo no tópico final do Capítulo 7, intitulado “Reprogramando sociosferas” e no tópico “Netweaver howto” do Capítulo 9. Neste último, em especial, esclarece-se o sentido com que a palavra é utilizada aqui: “Para fazer netweaving não há nenhum conteúdo substantivo (filosófico, científico ou técnico) que você tenha que adquirir: basta desobedecer, inovar e tecer redes. Isto sim, você vai ter que aprender: a tecer redes – da única maneira possível de se aprender isso: interagindo com outras pessoas sem erigir hierarquias (sem mandar nos outros e sem obedecer a alguém). Isto é netweaving!”. Há ainda outros usos da palavra, mais ou menos sérios, quer como Network Weaving ou como NetWeaving: http://www.networkweaver.blogspot.com.br/ ou http://www.netweaving.com/ (embora esse último link tenha expirado). Talvez possa ser útil também fazer o meu curso sobre o tema que vai começar em agosto de 2025: Netweaving - Articulação e animação de redes humanas.
Caro Augusto, essa análise me deixou ainda mais preocupado com a manipulação e controle das mídias sociais.