Ser democrata não é mesmo muito fácil.
No Brasil implica fazer oposição aos dois populismos que parasitam nosso regime político: o lulopetismo e o bolsonarismo.
Na América Latina implica denunciar as ditaduras de esquerda de Cuba, Venezuela, Nicarágua e de extrema-direita de El Salvador e criticar o neopopulismo de Obrador-Sheinbaum, Zelaya-Xiomara, Evo e Arce, Petro e Lula - líderes que se alinham, objetivamente, ao eixo autocrático.
No mundo implica denunciar a netwar movida pelo eixo autocrático contra as democracias liberais, desvendar o caráter autoritário do BRICS, defender a Ucrânia e a Europa contra o expansionismo de Putin e apoiar Taiwan contra a tentativa de anexação de Xi Jinping, defender Israel contra a guerra movida pela teocracia do Irã e seus braços terroristas e incentivar a sociedade democrática israelense a remover o nacional-populista Netanyahu do governo, criticar Trump, o MAGA e os tecnofeudalistas, combater a coalizão da extrema-direita que reúne líderes populistas-autoritários (como Orbán, Erdogan, Farage, Salvini e Meloni, Ventura, Abascal, Le Pen e Bardella, Chrupalla e Weidel), criticar o projeto mítico-autocrático de Modi (chamado Bharat), criticar as ditaduras asiáticas, africanas e do oriente médio (inclusive as islâmicas) et coetera.
Não é de surpreender que tão poucos façam isso.
Além de tudo, ser democrata pode ser um risco à própria sobrevivência. Se você é um analista político que faz oposição sistemática ao lulopetismo e ao bolsonarismo não conseguirá trabalho nos meios de comunicação profissionais, não apenas nos tradicionais, mas também nos alternativos. Ninguém quer contratar alguém que possa dificultar financiamentos e desagradar parcelas significativas do seu público potencial. Não é bom para os negócios.
Se você é um empresário, palestrante ou consultor empresarial, ser democrata também será um problema. Por razões óbvias que - como são as mesmas - dispensam outras explicações: não é bom para os negócios. E isso vale igualmente, mutatis mutandis, para qualquer empregado. No melhor dos casos você será visto como “polêmico”. No pior, acusado de partidarismo ou sectarismo, ainda que não pertença a um partido, nem seja simpático a qualquer seita. Ou será acusado de radicalismo, mesmo que seja um moderado.
Se você é um acadêmico, sobretudo da área de Humanas, ave maria! Nesse caso, criticou o populismo de esquerda, danou-se. Porque esse populismo (de esquerda) ou tem sua existência simplesmente negada pelos universitários (para parte deles populismo só existe se for de extrema-direita) ou resignadamente admitido e então logo justificado com argumentos marxistas. Aliás, nos campi universitários - se não for marxista (por profissão de fé e por profissão mesmo) - você será rechaçado, denunciado, cancelado e, no limite, excomungado (sim, o termo exato é esse mesmo - pois o troço funciona mais ou menos assim como uma religião, conquanto laica). Não será escolhido para cargos administrativos, convidado para palestras em congressos, indicado para compor bancas e, não raro, terá suas aulas invadidas e contestadas por militantes, sejam alunos ou até funcionários e professores.
Mas o mais importante vem agora. E se você é um político? Tomemos o caso típico do Brasil. Quantos políticos estão fazendo oposição democrática atualmente? Há, por certo, uma oposição antidemocrática (bolsonarista) ao governo (lulopetista). Há um chamado “centrão” fisiológico que oscila entre o governismo e a defesa de seus próprios interesses, eleitorais e outros. Mas onde está a oposição democrática? Quais são seus expoentes, seus líderes, seus partidos? Praticamente não se encontra.
Os que discordam do governo neopopulista - dito de esquerda ou, para disfarçar, de centro-esquerda (supostamente “social-democrata”) - e da oposição majoritária populista-autoritária, devem achar que não é seu papel precípuo fazer oposição, talvez para não ser confundidos com o bolsonarismo golpista. É uma atitude justificada pelo medo, mas que não consegue esconder seu oportunismo. É como se dissessem: “vamos aguardar o próximo processo eleitoral para aparecer, talvez”. Sim, talvez… Porque tal posição futura depende de várias coisas: de se haverá chances reais de vitória, de se isso vai ajudar a impulsionar nossas carreiras ou favorecer nossos interesses.
Enquanto isso, porém, ninguém articula um centro de gravidade democrático em torno do qual a política possa orbitar, fora da polarização estiolante e tóxica entre os dois populismos que parasitam nosso regime político. Mesmo diante da evidência de que não existe, em nenhum lugar do mundo, democracia (liberal) sem oposição democrática, quase ninguém se move. Quem faz oposição democrática hoje são alguns veículos da imprensa tradicional, por meio de seus editoriais e um ou outro jornalista. Não há lideranças políticas, não há partidos, não há organizações.
Enquanto isso, Lula se prepara para figurar na galeria de ditadores que vão a Moscou em maio de 2025 para a Parada da Vitória, cujo objetivo é reabilitar o ditador Vladimir Putin. Vejam a foto da “internacional antifascista” que ilustra este artigo (ainda que não se saiba bem se os governantes que aparecem na galeria são os convidados ou os confirmados). Só essa decisão do governante do Brasil, de comparecer a um evento desse tipo, já seria motivo de uma severa crítica ou mesmo de um grande protesto de uma oposição democrática. Se houvesse.
Mas como alguém pode se dizer democrata sem fazer oposição (democrática) aos populismos e autoritarismos, no governo ou fora dele - sejam ditos de esquerda, de direita ou extrema-direita?
Não pode. Mas chegamos numa situação tal que os democratas têm que pedir desculpas, inclusive a seus amigos e aos seus antigos aliados, por serem democratas. Eu peço desculpas por importuná-los com um artigo tão inconveniente.
Excelente artigo. Fico me perguntando: quais seriam os passos práticos para que um centro Democrático se formasse em nossa conjuntura político-social?
Em recente entrevista ao podcast do Jon Stewart, Pete Buttigieg comentou sobre a incapacidade do partido Democrata articular uma mensagem para o eleitorado que fosse capaz de restabelecer uma ponte com o eleitorado que perderam para o MAGA.
Por aqui, parece-me que ainda estamos distantes deste tipo de reflexão, ao menos em nível partidário.
Perfeito.