Sobre o supremo analfabetismo democrático
Depois de muitas décadas trabalhando com o assunto creio que posso dizer que a concepção de democracia de muitos membros do nosso supremo tribunal federal é insuficiente, quando não pedestre.
Augusto de Franco, Inteligência Democrática (29/08/2024)
Siga o fio.
1 - Restringir direitos políticos e liberdades civis dos considerados inimigos da democracia para "salvar a democracia" nunca será democratizante. O que nossas sumidades jurídicas não percebem é que democracia requer império da lei, mas não se reduz a isso.
2 - Não há democracia sem sociedade democrática. Não basta um Estado de direito. É preciso um Estado democrático de direito, entendendo-se por isso um Estado controlado, em algum grau, pela sociedade e não um Estado capaz de controlar a sociedade.
3 - Há um problema com as concepções de democracia de muitos de nossos ministros da suprema corte. Alguns aprenderam o que é democracia como pacientes da ensinagem em cursos de direito ou da sua interação no mundo jurídico. Não é suficiente.
4 - Se a visão da democracia que se adquire no mundo jurídico fosse suficiente para aprender democracia, muitos de nossos juízes supremos não ficariam tão vulneráveis à noções autocráticas como a de "democracia militante".
5 - No Brasil há forte domínio da lei, mas o judiciário, conquanto seja, em boa medida, independente, não é constrangido de modo efetivo pelos freios e contrapesos institucionais. É por isso 1) que não somos uma democracia liberal.
6 - No Brasil não há uma cultura política que valoriza a pluralidade política: as oposições democráticas não são reconhecidas como players legítimos e fundamentais para o bom funcionamento do regime. É por isso 2) que não somos uma democracia liberal.
7 - No Brasil a visão predominante do poder político é excessivamente positiva: os limites e condicionamentos impostos pela sociedade às instituições do Estado são insuficientes. Nossa sociedade não controla o governo em grau satisfatório. Por isso 3) não somos uma democracia liberal.
8 - Duvida-se que os membros da nossa suprema corte saibam explicar por que não somos uma democracia liberal. Aliás, suspeita-se que eles nem estejam familiarizados com as classificações de regimes políticos das mais reconhecidas instituições que monitoram a democracia no mundo.
9 - Nossos juízes e seus doutrinadores referenciais vivem no mundo paralelo das ideias jurídicas; e.g., não sabem explicar as diferenças entre a democracia no século 5 e no século 4 a.C. em Atenas, quando o que era o jogo começou a virar a regra do jogo (o embrião do Estado de direito).
10 - A redução da democracia a um Estado de direito, que talvez tenha começado com a graphé paranómõn (antepassada da arguição de inconstitucionalidade), não leva em conta as regras não escritas sem as quais nenhuma democracia pode existir. Não bastam as regras escritas (leis).
11 - Por isso, a democracia não pode ser salva como um modelo (de Estado) porque ela não é um modelo e sim um processo: o processo de democratização (que ocorre, fundamentalmente, na sociedade).
12 - Para que esse processo de democratização não seja enfreado é preciso tomar todo cuidado do mundo para não restringir direitos políticos e liberdades civis. Mesmo quando os que violam as leis sejam, de fato ou declaradamente, contrários à democracia.
13 - Por isso os guardiães das leis jamais podem tomar partido ao regular os dilemas da ação coletiva, mesmo em nome de defender ou "salvar" a democracia. Não podem ser "soldados" ou "militantes" da democracia (até porque vá-se lá saber qual a sua concepção de democracia).