Trocando democracia por soberania
É fácil entender as posições de Lula e do PT. Eles trocaram o conceito de democracia pelo conceito de cidadania (ofertada pelo Estado comandado pelo líder populista). E trocaram o conceito de democracia como valor universal pelo conceito (absoluto) de soberania nacional. São dois, por assim dizer, deslizamentos epistemológicos importantes que conduzem ao pensamento autocrático. Vou comentar aqui o segundo.
Soberania só está acima da democracia para quem não é democrata. A democracia, ao contrário do que dizem os soberanistas de esquerda ou de direita, não é uma questão interna de cada país. Um regime não-democrático, que viola direitos políticos e liberdades civis, prejudica toda a humanidade. Isso para nem falar de regimes que invadem outros países ou neles perpetram atos terroristas. É por isso, por exemplo, que a Declaração de Direitos Humanos que adotamos é Universal, não Nacional. Ora, a democracia também é um valor universal.
Dizer que a democracia é um valor universal significa dizer que ela pode ser experimentada universalmente, como regime político ou como modo-de-vida, por aqueles que a desejam - se tiverem condições para tal.
O fato de certos povos, imersos em culturas patriarcais em estado mais puro (ou seja, menos domesticadas e reformadas pelos fluxos interativos da convivência social), não aceitarem a democracia, não significa que a democracia não seja um valor universal (e sim ocidental, como querem os multiculturalistas). A democracia continua sendo um valor universal: o que significa que ela continua sendo valorizada universalmente (isto é, em qualquer época ou lugar) pelos que pensam (e se comportam condizentemente com esse pensamento) que o sentido da política é a liberdade (e não a ordem, como afirmam os autocratas).
A alegação de preservação absoluta da soberania para justificar regimes tiranos (como o da Rússia) e terroristas (como o do Irã) é uma patifaria. Infelizmente muitos analistas, infectados por ideias autocráticas do realismo político, continuam insistindo em fazer isso.
Mas um Estado-nação, em nome da soberania, pode tiranizar seu próprio povo? Pode invadir outros países ou neles praticar atos terroristas? Não? Como já foi dito anteriormente, mas é bom repetir: por isso não temos uma Declaração Nacional dos Direitos Humanos e sim uma Declaração Universal. Como os direitos humanos, a democracia é um valor universal, a soberania não.
Mike Brock, no artigo Democracy has enemies, publicado no seu substack Notes from the circus em 19/06/2025, é esclarecedor:
Quem invoca “soberania” para defender regimes autoritários joga um jogo de esconde-esconde moral. Querem que você acredite que respeitar fronteiras significa ignorar o que acontece dentro delas, que a não-interferência é sagrada e supera qualquer outra consideração.
Mas soberania nunca foi criada para proteger opressão — foi criada para proteger autodeterminação. E não há autodeterminação sob regime autoritário, apenas a eliminação sistemática da capacidade de autodeterminação.
Quando invocamos soberania para proteger regimes que negam direitos humanos básicos, não defendemos princípio — defendemos o direito dos tiranos a tiranizar sem consequências. Usamos o direito internacional como escudo justamente para as forças que o tornam vazio de sentido.
O Partido Comunista Chinês não respeita soberania — viola-a diariamente com guerra cibernética, coerção econômica e interferência sistemática. Putin não respeita soberania — baseou toda sua política externa em violá-la com assassinatos, manipulação eleitoral e agressão territorial. O regime iraniano não respeita soberania — exporta terrorismo e opressão por onde alcança.
E, mesmo assim, quando democracias cogitam responsabilizar esses regimes, de repente a soberania se torna sagrada. O princípio que eles mesmos violam vira escudo contra consequências.
Isso é incoerência moral travestida de princípio legal.
À esquerda anti-imperialista e à direita pró-autoritária… dizem que a interferência americana em outros países justifica Xi Jinping e Putin fazerem o mesmo…
Numa democracia só a lei, democraticamente aprovada, é soberana, não um governo, uma instituição ou, muito menos, um projeto partidário, como quer o PT. Não é de hoje que o PT insiste num conceito autocrático de soberania (uma remanescência das monarquias absolutistas). Na "histórica" resolução do Diretório Nacional do PT, de 13/02/2023, assim como nas diretrizes para o plano de governo divulgadas durante a campanha eleitoral de Lula em 2022, a palavra ‘soberania’ aparece numa frequência igual ou maior do que a palavra ‘democracia’.
Isso tudo veio à baila agora com o revide de Israel (e dos EUA) aos ataques do Irã. O regime do Irã não tem soberania para fazer o que faz: internamente, contra seu próprio povo e, externamente, contra outros países. O Pásdárán (Corpo de Guardiães da Revolução Islâmica ou IRGC) coordena cerca de 12 organizações e grupos terroristas no Oriente Médio, alguns dos quais atacam Israel há mais de três décadas.
Lula e o PT não escondem o que pensam. A posição do governo Lula em relação à guerra do Irã contra Israel não é semelhante à da França, do Reino Unido, da Alemanha e da UE. Infelizmente é semelhante à da Rússia, da China, da Coreia do Norte e do próprio Irã. Para quem quiser entender, está tudo explicado.
Democracias apoiam outras democracias e movimentos democratizantes em qualquer país do mundo. A soberania nacional não pode e não deve ser uma barreira à democracia. A democracia é um valor universal, assim como os direitos humanos. Imaginem se não pudéssemos mais defender os direitos humanos por medo de desrespeitar a soberania nacional de ditaduras!