Vamos conversar sobre isso?
As autocracias, ao longo dos séculos, insistem na obediência e revelam aversão à pluralidade.
Em vez de aceitar o convívio entre diferentes, exaltam o saber superior e a ideia de que alguns nasceram para mandar e outros, para obedecer.
Essa lógica antiga — e ainda viva — rejeita a política como espaço de diálogo e ação entre iguais perante a lei, abrigando-se na promessa de uma ordem estável, imune à incerteza da vida pública.
Desde a Antiguidade, muitos viam a democracia como frágil e desordenada.
Preferiam confiar em um governante sábio, dotado de entendimento superior, que teria o direito natural de decidir por todos.
A melhor forma de governo, diziam, não seria aquela em que as leis valessem igualmente para todos, mas a que dependesse da razão de um só — o grande legislador, portador de uma missão quase divina.
Assim, o saber transformava-se em instrumento de comando, e a ordem, em valor mais alto que a liberdade.
A tradição política consolidou essa visão hierárquica.
Os defensores do debate foram apagados da história por desafiarem o princípio da autoridade.
Desde então, a distinção entre quem governa e quem é governado passou a ser tratada como natural, quase eterna, enquanto a igualdade política foi vista com desconfiança.
Durante a Idade Média, essa mentalidade ganhou força com a legitimação teológica do domínio.
O governante era visto como representante de uma ordem divina, e o exercício da autoridade, como expressão da vontade celestial.
A obediência deixava de ser um dever civil e tornava-se um dever sagrado.
A fé, a moral e o medo sustentavam o trono.
A ideia de pluralidade parecia uma ameaça à unidade espiritual do mundo.
Com o passar dos séculos e o surgimento do Estado moderno, essa visão teológica começou a se traduzir em fundamentos políticos.
A autoridade passou a ser concebida como algo que devia concentrar-se em um único centro, capaz de criar leis sem depender do consentimento de ninguém.
O domínio político foi então entendido como o direito de empregar a força para alcançar determinados efeitos — uma concepção hierárquica e instrumental que confunde liderança com dominação.
Com o tempo, o absolutismo levou esse modelo ao extremo.
As grandes decisões deveriam ser tomadas em segredo, longe do olhar público.
O regime autocrático, por natureza, esconde suas intenções e busca justificar-se afirmando que sua legitimidade está além da vontade humana comum.
Para garantir a obediência, recorre a forças transcendentes: à fé, à razão superior ou ao medo.
A filosofia e a teologia ajudaram a sustentar essa crença, pregando que toda sociedade precisa de uma versão oficial do sentido da vida, da moral e da morte — para legitimar suas leis e instituições.
A obediência era um ato de fé.
Alguns tentaram conciliar a razão com a necessidade política de autoridade.
Usaram, para isso, um duplo discurso: o público, que reforçava a obediência; e o reservado, que preservava a liberdade do pensamento.
Esse método permitia defender a ordem sem parecer inimigo da reflexão.
Assim, formou-se uma longa tradição de conciliação entre saber e comando — entre a filosofia que se dobra e a religião que se impõe.
O pensamento patriarcal reforçou esse arranjo, apresentando suas explicações como verdades absolutas, características da própria realidade — como se o domínio de uns sobre outros fosse natural e inevitável.
Com o avanço da razão e o questionamento das estruturas tradicionais, surgiu a crítica à tirania.
Percebeu-se que o domínio autocrático, ao tentar ser sólido, acabava tornando-se frágil.
O tirano, isolado de todos, perdia o contato com a pluralidade humana — que é, afinal, a verdadeira fonte de autoridade.
A tirania gera impotência, tanto no governante quanto nos governados, porque destrói a vitalidade das relações humanas e a capacidade de agir coletivamente.
Por isso, as tiranias desabam não por falta de força, mas por falta de vida.
Nos tempos modernos, a autocracia aprendeu a se disfarçar.
Uma de suas formas mais sutis é a autoridade centralizada que dissolve as instâncias intermediárias — instituições, comunidades, sindicatos e outras — que sustentam a liberdade.
Quando o cidadão é reduzido a um indivíduo isolado diante do Estado, a autocracia veste a máscara da democracia — desde que ele possa consumir, descansar e não incomodar.
Os governantes operam de modo gradual e disfarçado, apoiados por elites invisíveis — corporações, serviços secretos, estruturas burocráticas — que mantêm privilégios e controlam o fluxo da autoridade.
As novas autocracias corrompem a legalidade por dentro das instituições. O controle e a vigilância digital substituem as antigas muralhas do poder. Vivenciamos a terceira onda de autocratização no mundo. É hora de desconstituí-las.
O padrão autocrático continua, por essência, incompatível com o espírito democrático.
A democracia implica não ser súdito nem escravo de ninguém.
É o exercício da autonomia compartilhada — um aprendizado constante de convivência, diálogo e responsabilidade comum.
É incompatível com qualquer ideia que afirme que alguns são mais dignos ou mais capazes de governar do que outros.
Enquanto a autocracia acredita que a autoridade deve concentrar-se em poucos para proteger os muitos, a democracia busca distribuí-la para que ninguém precise mandar, nem proteger — apenas respeitar-se mutuamente.
Compreender os padrões autocráticos é compreender o que ameaça a liberdade.
Reconhecê-los é o primeiro passo para resistir a eles — que sempre se apresentam para restaurar a ordem.
Espero conversar sobre tudo isso no Clube de Leitura das Distopias, que começa no próximo 6 de outubro de 2025. Quem quiser se juntar ao clube será bem vindo ou bem vinda. Para saber mais clique aqui.




